Cannabis medicinal: mĂ©dico se diz estarrecido com resolução do Conselho Federal de Medicina

Ele disse que o laboratório Lille, dos Estados Unidos, vendia na dĂ©cada de 1920 uma tintura de Cannabis para asma brônquica, diminuição da pressão arterial, insônia e ansiedade

Por Portal O Piauí em 23/10/2022 às 13:35:39

A discussão sobre Cannabis medicinal e psiquiatria tem vĂĄrias impropriedades, alertou, em entrevista à AgĂȘncia Brasil, o diretor da Associação PsiquiĂĄtrica do Estado do Rio de Janeiro e filiado à Associação Brasileira de Psiquiatria, Marcelo Allevato. No caso da doença de Alzheimer, que é a forma mais comum de demĂȘncia neurodegenerativa em pessoas de idade, por exemplo, Allevato descartou que haja relação com a Cannabis medicinal.

"É uma demĂȘncia, e a Cannabis não tem possibilidade nenhuma de tratar demĂȘncia. Pode tratar, teoricamente, algumas alterações de comportamento, mas não tem nenhuma evidĂȘncia consistente disso ainda não. É só uma possibilidade."

Segundo Allevato, existem muitas impropriedades sobre "medicamentos" à base de Cannabis. Ele disse que, de acordo com a AgĂȘncia Nacional de Vigilância SanitĂĄria (Anvisa), existe apenas um medicamento à base de Cannabis, mas destacou que hĂĄ produtos à base da planta, que são registrados com autorização provisória, com duração de cinco anos, que podem ser usados quando se esgotam todas as possibilidades terapĂȘuticas disponĂ­veis no mercado brasileiro.

Nota do portal: Hoje, no Brasil milhares de pessoas jĂĄ fazem uso da cannabis medicinal para tratamento de muitas doenças que era mais possĂ­vel ser tratado com remédios. Com isso, a qualidade de vida aumentou muito, segundo depoimentos de pessoas e instituições que trabalham com esta alternativa em saĂșde e assistĂȘncia social. Então, a Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) gerou insatisfação nas famĂ­lias que tĂȘm entes queridos que tem doenças graves e que precisam da cannabis para obterem mais qualidade de vida.

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Tudo isso estĂĄ englobado na Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa (RDC 327), que regula os produtos de Cannabis no Brasil. "Então, falar de medicamentos é impropriedade, demonstra desconhecimento do assunto. O que é triste é que muitos médicos desconhecem também e são presas fĂĄceis de mensagens comerciais que não tĂȘm a menor consistĂȘncia, na realidade", advertiu o médico psiquiatra.

Desenvolvido em vĂĄrias fases, da concepção da ideia até os testes clĂ­nicos, e depois comercializado, o Ășnico medicamento à base de Cannabis existente no Brasil é o Mevatyl, liberado como adjuvante no tratamento de espasticidade na esclerose mĂșltipla, causada por danos ou lesões na parte do sistema nervoso central (cérebro ou medula espinhal) que controla o movimento voluntĂĄrio. "Este é o Ășnico medicamento à base de Cannabis existente no Brasil. Chamar produto à base de Cannabis de medicamento é uma impropriedade", reiterou o médico.

Confirmação

A assessoria de imprensa da Anvisa confirmou à AgĂȘncia Brasil que, até o momento, o Ășnico medicamento à base de Cannabis registrado no Brasil tem o nome comercial de Mevatyl. De acordo com a Anvisa, o Mevaty é um medicamento, pois passou pelos mesmos requisitos técnicos aplicados a todos os demais registrados na agĂȘncia, o que envolve estudos clĂ­nicos e comprovação de segurança e eficĂĄcia, entre outras exigĂȘncias. O Mevatyl foi registrado em 9 de janeiro de 2017 com indicação no tratamento sintomĂĄtico da espasticidade moderada a grave relacionada à esclerose mĂșltipla.

Os demais itens regularizados pela Anvisa são categorizados tecnicamente como produtos derivados de Cannabis, um segmento especĂ­fico criado em 2019 (Resolução RDC 327), que não tem indicação terapĂȘutica especĂ­fica e cuja anĂĄlise de benefĂ­cio deve ser feita pelo médico, de acordo com o caso de cada paciente.

Segundo a Anvisa, os produtos derivados de Cannabis recebem autorização sanitĂĄria, e não registro, para que possam estar à disposição dos pacientes. "Ou seja, a indicação e a forma de uso dos produtos derivados de Cannabis são de responsabilidade do médico que assiste o paciente, que faz tal indicação a partir da avaliação de que seu paciente pode se beneficiar do tratamento, especialmente em casos para os quais não hĂĄ opções terapĂȘuticas disponĂ­veis".

Atualmente, existem 20 produtos autorizados pela Anvisa. A lista completa pode ser consultada aqui.

Sem liberação

Allevato afirmou que não hĂĄ, em lugar algum do mundo, medicamento à base de Cannabis liberado para uso psiquiĂĄtrico. Legislações de alguns paĂ­ses permitem o uso de derivados da Cannabis em situações excepcionais, em algumas enfermidades. Isso ocorre, por exemplo, em Israel e na maioria dos estados norte-americanos. "Mas tudo dentro de um controle muito rĂ­gido, após se esgotarem as possibilidades terapĂȘuticas".

O médico disse que, no Brasil, o que houve foi uma "tentativa de disseminar um uso que é completamente contrĂĄrio ao que é preconizado. Na verdade, é disseminar um uso de maneira indiscriminada, ou seja, tenho ansiedade, vou tomar canabidiol". O mesmo se aplica para depressão, insônia, Alzheimer, autismo. O médico sustentou que não hĂĄ evidĂȘncia cientĂ­fica sólida para isso.

Ele admitiu, porém, que, em casos em que o paciente não responde a nada, o médico pode usar esses produtos. É o chamado uso compassivo.

De acordo com o psiquiatra, uma corrente que defende os produtos derivados da maconha sustenta que a divulgação das supostas propriedades medicinais da Cannabis reduz a percepção de risco recreacional. Para ele, o uso recreativo da Cannabis implica riscos que tĂȘm sido cada vez mais avaliados, principalmente em pacientes vulnerĂĄveis geneticamente, ou que estão em janelas crĂ­ticas do desenvolvimento. Nesses casos, a Cannabis pode levar ao desenvolvimento de psicoses, de dependĂȘncia e gerar alterações no desenvolvimento cerebral, muitas das vezes irreversĂ­veis.

Momento complicado

JĂĄ a presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e Outras Drogas (Abead), Alessandra Diehl, destacou que o mundo vive hoje um momento complicado, em que interesses financeiros muitas vezes se sobrepõem ao interesse individual e coletivo. "Esse lobby de ter algo que funcione para tudo, para mim, jĂĄ soa como um alerta. Como uma substância vai servir para tantas coisas ou tantas condições assim?", questionou Alessandra, em entrevista à AgĂȘncia Brasil.

Alessandra disse que hĂĄ uma desinformação crescente, porque se reforça que algo possa servir para tudo, quando, na verdade, sabe-se que tem apenas condições especĂ­ficas em que existem evidĂȘncias comprovadas. Não se trata, segundo a psiquiatra, da Cannabis medicinal em si, mas de um componente que seria o canabidiol (CBD).

A psiquiatra ressaltou que o sistema do canabinoide precisa ser desvendado, porque aĂ­ pode estar o segredo do desenvolvimento de medicamentos, até para se saber um pouco mais de determinadas doenças. Segundo Alessandra, não se pode dizer que o canabidiol funciona para tudo, porque ele pulou o caminho do desenvolvimento dos fĂĄrmacos, que tiveram que passar por regulações que lhe garantem condições de segurança, bioequivalĂȘncia, biodisponibilidade, qualidade, dose terapĂȘutica.

Outra visão

Visão diferente tem o médico Nelson Goldenstein, do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Goldenstein disse à AgĂȘncia Brasil que ficou estarrecido com a resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proĂ­be médicos de prescrever Cannabis in natura para uso medicinal, bem como quaisquer outros derivados que não o canabidiol.

O CFM vedou também a prescrição de canabidiol para indicação terapĂȘutica diversa da prevista na resolução, com exceção de estudos clĂ­nicos previamente autorizados pelo sistema formado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa e Conselhos de Ética em Pesquisa.

O psiquiatra afirmou, entretanto, que seguirĂĄ a resolução do CFM. Ele admitiu que o uso da Cannabis precisa de regulamentação, mas considerou que voltar no tempo é inadmissĂ­vel. Goldenstein salientou que hĂĄ descrições na literatura do uso medicinal da Cannabis na China e na Índia hĂĄ cerca de 6 mil anos, descrevendo a planta com efeito medicinal polivalente, benéfico e terapĂȘutico para vĂĄrias condições.

Tais efeitos foram confirmados no século 19 por médicos da Rainha Vitória, em expedições realizadas nas colônias do Reino Unido, cujas publicações comprovaram o uso terapĂȘutico e polivalente da Cannabis no tratamento de problemas como epilepsia, ansiedade e insônia.

Até o inĂ­cio do século 20, não havia proibição alguma para o uso de Cannabis, disse Goldenstein. As farmĂĄcias de manipulação, inclusive no Brasil, preparavam as fórmulas prescritas pelos médicos à base de Cannabis. Segundo o médico, o laboratório Lille, dos Estados Unidos, vendia na década de 1920 uma tintura de Cannabis para asma brônquica, diminuição da pressão arterial, insônia e ansiedade.

Goldenstein destacou que, em 1960, Raphael Mechoulam e sua equipe descreveram os até então inéditos canabidiol e tetrahidrocanabinol (THC), abrindo espaço para que pesquisadores americanos identificassem o sistema endocanabinoide (SEC) na década de 1990. O SEC é considerado um importante aliado da regulação e do equilĂ­brio de uma série de processos fisiológicos no corpo humano. O sistema oferece as condições naturais para que o organismo se beneficie das propriedades terapĂȘuticas da Cannabis no enfrentamento de uma série de doenças.

O psiquiatra ressaltou que os perigos do uso indiscriminado e em doses elevadas da maconha jĂĄ eram falados pelos chineses 3.700 anos A.C. (Antes de Cristo), portanto hĂĄ 6 mil anos. É um risco que existe também com a anfetamina e a morfina, entre outras substâncias. Para Goldenstein, ser contra evidĂȘncias de 6 mil anos "é desconhecimento", o mesmo ocorrendo em relação a estudos efetuados desde os anos de 1960, que atestam o uso polivalente e medicinal da Cannabis.

Fonte: AgĂȘncia Brasil

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