Arqueóloga piauiense do Centro Nacional de Arqueologia, em Brasília, fala sobre qual a maior saudade que sente do Piauí

"Lembro de ver as pipas no céu de junho com a seda que sobrava das bandeirinhas - eu já falei que junho é meu mês preferido? Pois é"

Por Portal O Piauí em 22/05/2023 às 05:33:49

Dinoelly Alves, a piauiense que mora em Brasília, dá depoimento emocionante

?A emoção é uma marca registrada do projeto EITA SAUDADE DO PIAUÍ criado pelo portal. Desta vez, é o depoimento da piauiense Dinoelly Soares Alves, de 32 anos, que traz este sentimento tão nosso, do povo do Piauí. Somos emotivos por natureza. Porque não?

Pois bem! Ao ler o depoimento da Dinoelly, o leitor será levado a muitas emoções, a memórias e a coisas boas do nosso Estado.

Ela é uma piauiense da gema. Não esquece suas raízes. Quando fez concurso e escolheu Brasília para morar e trabalhar, tomou uma decisão de cunho estratégico do ponto de vista familiar. Queria uma cidade que fosse fácil visitar sua terra natal e sua família no Parque Piauí, Zona Sul de Teresina.

Hoje, Dinoelly trabalha no Centro Nacional de Arqueologia do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, em Brasília. É arqueóloga formada pela Universidade Federal do Piauí. E mestre em Antropologia e Arqueologia também pela Universidade Federal do Piauí(UFPI).

"Lembro que no concurso eu escolhi Brasília por ter uma ponte aérea direta para Teresina, desde sempre pensei na logística para estar "perto" de casa e da minha família." Que dica de passeio ela daria a alguém que vem pela primeira vez ao Piauí? Para saber isso e muito mais, confira a entrevista que está excelente. Emoção do início ao fim!

A foto da Dinoelly que durante visita à Serra da Capivara tem a ver com a dica que dá a quem vem ao Piauí pela primeira vez

Qual sua maior saudade do Piauí?

Minha maior saudade do Piauí, mais precisamente de Teresina, é a saudade de casa, da rotina que eu tinha na cidade, com a cidade, com as pessoas. Com a proximidade em que as relações acontecem e se firmam, com a naturalidade de se tornar íntimo de qualquer desconhecido, com a falta de pressa em passar o troco (talvez disso eu não tenha tanta saudade).

Eu sinto saudade do conforto que é estar onde conheço bem. Eu sempre fui meio desorientada em termos de direção, dirijo muito bem, mas sou desorientada, então, uma das coisas que eu lembro é da confiança em dirigir em qualquer lugar de Teresina, e caso eu me perdesse era só ir em direção ao Rio Parnaíba, pegar a Avenida Maranhão até o Saci e chegar ao Parque Piauí, onde vivi a vida inteira. Hoje a cidade tá diferente, sem GPS eu só chego até o mercado do parque.

A maioria dos meus amigos de fora de Teresina foram crianças que cresceram em apartamentos, que brincavam nos pilotis, no playground do prédio "empinando pipa no ventilador". Então, uma das saudades que gosto de compartilhar são as memórias de uma infância em uma capital que ainda era considerada pequena, uma infância com brincadeiras na rua, uma rua repleta de casas, antes do "boom" da verticalização da nossa capital.

Eu não consigo contar quantas vezes arranquei o tampo do dedão do pé porque jogava futebol no calçamento da rua, dividia o quintal com metade do bairro para brincar, madrugava em ensaios de quadrilha de festa junina do colégio, do bairro, da rua, da família. Tenho lembranças fortes da época em que ajudava enfeitar a quadra com bandeirinhas de seda para a Copa do Mundo (quando o verde e amarelo ainda era algo possível). Lembro de ver as pipas no céu de junho com a seda que sobrava das bandeirinhas - eu já falei que junho é meu mês preferido? Pois é. Vem a lembrança do creme de galinha e absolutamente de todas as festas, ocasiões e ajuntamentos sociais, até hoje é minha comida preferida. E acreditem! Creme de galinha só existe no Piauí!

De Teresina eu tenho saudades da rotina, do que acontecia por perto, de como a gente ia vivendo sem pretensão de que essa vida poderia deixar saudade. No fim das contas, a saudade é do simples, do óbvio.


Se você pudesse, neste momento, estar em algum "canto" do Piauí, qual seria?

Estou relutante em responder algo extremamente particular sobre isso, mas o que vem a minha cabeça, ainda mais pensando em "canto", é um cômodo da minha casa que chamamos de "beco", e o beco é provavelmente o lugar mais habitado pela família e amigos, é a nossa sala de estar. Mas ok! Vou tentar ampliar melhor essa referência.

A gente sempre acha que a nossa época foi a melhor de todas. É uma tendência saudosista e fácil de ter. Eu não julgo quem tem. Para mim, a "era de ouro teresinense" começou por volta de 2007, e "na minha época" a cidade tinha muitas possibilidades culturais. Mas, apesar do gosto meio eclético para música, os lugares que eu frequentava eram sempre os ditos "alternativos": inferninhos de rock, quintais comprometedores, trilhos de trem, galpões da ferrovia e casas abandonadas. As bandas misturavam rock progressivo com forró, os vocalistas ainda cantavam com a voz para fora, bandas cover vendiam mais que a original, e sempre dava para encontrar todos os ex-namorados e namoradas na mesma rodinha de conversa. Parece caótico, mas era bom (essa última parte ainda deve acontecer). Mas, o que vinha antes e depois de cada um desses lugares? O beco. Sempre o beco. Era o esquenta e o after (antes de existir "after").

Cabe dizer que o beco é um corredor da casa que dá acesso à distribuidora de bebidas dos meus pais, logo, fica entendido que eu sempre tive muitos amigos e que eles costumavam não ir embora. Por sorte, isso nunca foi um problema na minha casa, e no beco, eu pude, inúmeras vezes, reunir as pessoas mais importantes da minha vida. É certo que metade da população teresinense já passou por lá, mas, se você voltou mais de uma vez, significa que você foi importante.

O beco já viu de um tudo: começo de amores, ensaio de desamores, DR familiares e amorosas, despedidas, reencontros, serenatas, batucadas, buchadas, sarapatéis, Torquatos, filhos e netos, repentes, histórias, lágrimas, cervejas, campares, cajuínas, festas, colos, mormaços, coriscos, chapadas, chapados, bêbados, baiões... de dois... de três, Marias, as Quatro Marias, mães, gentes... gentes de todos os tipos de gente.


Que dica de passeio você daria a alguém que vem pela primeira vez ao Piauí?

Não vou negar minha formação, é claro que eu indicaria, como, aliás, sempre indico, o Parque Nacional da Serra da Capivara, em São Raimundo Nonato e Coronel José Dias. O parque é único, é uma experiência que se vive em poucos lugares, vai além do seu propósito científico e possibilita boas ligações, seja com a natureza, com as pessoas que fazem o local, seja com o passado mais distante representado pela estrutura do parque e dos sítios arqueológicos, o que garante um turismo de altíssima qualidade. A própria cidade de São Raimundo é muito acolhedora, eu tenho ótimas memórias com a cidade em diversos momentos da minha vida.

Também gosto muito do nosso litoral minimalista, dá para fazer em 12 braçadas e a água é morninha. É lindo!

Que coisas do Piauí você não trocaria jamais?

Não trocaria nossa história, a forma como chegamos aqui. É óbvio que poderia ser uma história socialmente menos dolorosa, politicamente mais digna. E claro, poderíamos não ter sido o estereótipo de miséria no Brasil. De todo modo, acho que o Piauí tem uma história muito bonita, e em muitos aspectos com escolhas e rumos que nos diferenciam de outros lugares.

Há várias coisas do Piauí que eu não troquei e não trocaria. Tento ter um pouco sempre por perto, além do que já carrego em mim. Minha casa tem muito do estado, tenho apego a coisas que nem são dignas das melhores decorações, mas seguem lá, na estante.

Teresina tem um tipo de boteco que eu gosto muito: o chão batido, um cajueiro dando sombra, cerveja gelada em um isopor de isopor, pôr do sol entrando em algum rio, um reggae local tocando na rádio enquanto a gente reclama do calor? esse boteco eu não troco jamais; e não é fácil de achar, viu?

O que levou você a morar em outro lugar?

Em 2015, eu passei em um concurso público para minha área de formação, arqueologia, e desde então moro em Brasília. Mas, antes disso, eu tive algumas oportunidades de trabalho no Piauí. O estado tem campo de trabalho para arqueologia e foi importante para o meu início profissional. Lembro que no concurso eu escolhi Brasília por ter uma ponte aérea direta para Teresina, desde sempre pensei na logística para estar "perto" de casa e da minha família.

É engraçado pensar que eu conheço e tenho muitos amigos que sempre quiseram sair de Teresina, ir para uma cidade maior e que não fosse tão "provinciana" em alguns aspectos. Quanto a mim, não tinha a menor vontade de sair de Teresina. Eu reconhecia as críticas, mas tudo bem, fazia parte e eu queria continuar ali. Sair de casa foi algo zero planejado, inesperado e rápido, quando eu vi estava de mala e cuia no aeroporto protelando entrar no avião. Eu já trabalhava viajando, mas sair definitivamente de Teresina foi algo doloroso, nunca foi um plano.

Minha dica para quem quer sair do Piauí é: "não pensem em sair do Piauí", rs. Quando você menos esperar estará procurando uma quitinete enquanto lida com episódios da vida adulta. Você vai chorar em algum ponto de ônibus em um outubro chuvoso, torcendo para encontrar um parente ou um conhecido, e quando não encontrar, vai sentir saudade de Teresina, rs. Mas é isso! É a vida!


Qual sua percepção sobre o povo piauiense?

Falar do povo piauiense é, sobretudo, falar de mim. Eu me orgulho muito das características culturais que carrego: o sotaque que ainda canta, o chiado antes do "T", as expressões que causam curiosidades, referências particulares que obviamente cada lugar possui, mas, que eu tenho muito carinho daquelas que carrego; do lugar de onde vim.

Há alguns entendimentos unânimes sobre nós, de modo geral, coisas boas. O piauiense é um povo aberto, puxador de assunto, caçador de conversa. Tenho lembranças de muitas amizades que fiz só porque tocou uma música boa no bar e eu saí brindando com metade das mesas, alguns desses estranhos são meus amigos até hoje, os que não perduraram, contribuíram para uma boa noitada e já estava ótimo.

Mas tem uma parte nossa, não tão exuberante, que eu nunca deixei de pensar. Eu acho que o piauiense, por muito tempo, foi carente de uma representação positiva em larga escala. Não por falta de talento, claro, mas talvez por falta de incentivo, oportunidade ou autoestima. Nós fomos, reiteradas vezes, carimbados como referência de algo menor, pobre, de baixa relevância para o contexto nacional, e é inevitável que isso afete nossa identidade, nossa postura.

Em termos culturais, por exemplo, o próprio Torquato Neto, nossa maior referência no audiovisual, na literatura e na música, era um artista de "bastidor", não tinha a cara estampada na cultura de massa, não subia no palco. Certamente muitos piauienses não sabem que cantam músicas compostas por Torquato, que são interpretadas por cantores famosos. Pode parecer bobo, mas eu sempre senti essa ausência de referências culturais em larga escala, principalmente quando eu saí de Teresina. A falta de referência te coloca em um não-lugar.

Hoje a coisa mudou, sobretudo por conta das redes e mídias sociais. Mesmo em Brasília, eu estou sempre descobrindo bandas novas de Teresina, sempre mando para os conterrâneos que moram em outros estados. Vejo produções de altíssima qualidade, amigos que estão tocando a carreira com mais afinco, o surgimento dos influencers, e, claro, não dá para não mencionar o absolutismo do Whinderson Nunes. O Piauí demora, mas quando cria, cria monstros, rs. Acho que a tendência agora é deslanchar, girar a chave da autoestima e das referências. São outros e necessários tempos.


Pretende voltar a morar no Piauí ou vem mesmo só a passeio?

Por enquanto não tenho expectativa de voltar, muito por conta do trabalho e da burocracia para transferir de um local para outro, mas, a ideia de voltar para Teresina é uma ideia que me agrada. Enquanto isso, eu sigo indo a passeio, tento manter alguma regularidade por conta da saudade de casa e da família, mas os anos de pandemia e agora os altos preços de passagens tem atrapalhado um pouco a frequência.

O que é o Piauí para você?

O Piauí para mim é origem, casa, saudade, retorno. Estrada. Meu pai foi caminhoneiro por alguns anos, então, eu sempre ouvi e várias vezes vivi histórias ao longo das andanças no estado. Em uma de suas viagens, ele me levou de caminhão de Teresina a Floriano, mais de 500 quilômetros de ida e volta. Éramos eu, ele, uma mamadeira de leite e muitos potes de seriguelas da árvore em que minha rede estava armada enquanto o caminhão era recarregado. Quando ando nas estradas do Piauí, gosto de pensar que todos os postes de luz das pequenas cidades foram colocados pelo meu pai, quando ele atravessou o estado levando o posteamento para o interior.

Quando me tornei arqueóloga, pegar a estrada era algo corriqueiro, a profissão raramente sobrevive sem deslocamento, sem estrada. Com isso tive a oportunidade de conhecer muitas cidades, povoados, localidades pequeníssimas e muitas vezes carentes. O Piauí, como boa parte do Nordeste, tem uma longa história de descaso político que só recentemente foi amenizada, ainda assim, sempre houve uma rede armada, um dedo de prosa, uma criança correndo para ver o comboio das caminhonetes, uma sombra de umbuzeiro, um gibão cortando a mata cinzenta. O Piauí para mim é isso, é gente dentro de paisagem, ambos resistindo a aridez do tempo.

Hoje, como é sua vida fora do Piauí?

Como arqueóloga, que contribuição você pode dar ao Piauí, já que é o berço do homem americano e que ainda tem muito o que descobrir nesta área?

Como é sua vida fora do Piauí?

Em Brasília eu moro sozinha, é, na verdade, uma rotina bem diferente da que eu tinha em Teresina, com a casa sempre cheia, apesar da família pequena. Brasília não é uma cidade fácil, seja pela própria disposição da cidade, seja pela fama de ser "fria" e pouco sociável. Pessoalmente eu nunca senti isso, em pouco tempo eu já gostava da cidade e, para minha sorte, encontrei bons amigos com quem construí relações de afeto, o que minimiza algumas ausências familiares. A cidade é uma confluência de pessoas que chegaram e chegam por motivações diversas, acho que isso cria um pertencimento, um ponto em comum.

Eu vim a Brasília para trabalhar, para assumir um concurso, que, diga-se de passagem, é um clichê da capital. Então, pela rotina do dia a dia, sempre usei o ambiente de trabalho para socializar e gastar a energia, sei que às vezes ninguém me aguenta com tanta falação!

No fim de semana eu costumo sair algum dia, mas nunca fui muito de balada, sou mais do boteco. Também gosto muito de fazer coisas em casa, receber amigos etc. Ultimamente eu tenho tentado manter uma rotina de andar de bicicleta, a cidade é bem propícia a isso, e o clima também.

Ao mesmo tempo que gosto de estar entre amigos, estar sozinha nunca foi uma questão, eu gosto da minha companhia (e dos meus gatos), tenho alguns rituais caseiros que já são tradição e não abro mão.

Eu passei parte da pandemia sozinha em Brasília, foi quando percebi que estar sozinha só é bom quando é uma opção, ou quando você tem controle do tempo em que estará só. Eu consegui dar conta da maior parte do tempo, mas, em algum momento eu comecei a sentir falta de ter gente em casa. A solidão não é óbvia, ela te pega sem muito contexto, às vezes é no corredor da casa enquanto está indo tomar água.


Como arqueóloga, que contribuição você pode dar ao Piauí, já que é o berço do homem americano e que ainda tem muito o descobrir nesta área?

Eu devo muito à Serra da Capivara na minha formação, estagiei algumas vezes enquanto estudante e voltei outras vezes enquanto profissional, esses fechamentos de ciclos são importantes. O trabalho que é feito na Serra é referência na arqueologia dentro e fora do país.

Tanto o meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), como minha dissertação de mestrado tiveram como objetos de pesquisa o Piauí. No primeiro eu trabalhei arqueologia e memória com o grupo indígena Cariris, de Queimada Nova/PI. Depois, ainda com memória (arqueologia pública), escrevi sobre a relação da colônia de pescadores de Cajueiro da Praia/PI com os sítios arqueológicos da localidade. Foram experiências ótimas, eu gosto da arqueologia que tem gente viva.

Hoje eu sou servidora do Iphan, que é o órgão que cuida do patrimônio cultural brasileiro, incluindo o patrimônio arqueológico. Então, eu gosto de pensar que de alguma forma estou contribuindo para a gestão e proteção da arqueologia, e claro, a arqueologia do estado do Piauí, que é um importante referencial de pesquisas, inclusive com datações bem recuadas, contando com os sítios mais antigos do país. E os mais bonitos também.

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