Governo Bolsonaro ignorou suspeita de violência sexual contra meninas indígenas com HPV

Pelo menos três meninas indígenas de 9 a 12 anos da etnia Jamamadi que vivem em Lábrea, no sul do Amazonas, foram diagnosticadas entre 2019 e 2021 com o vírus HPV, um indício de que as crianças podem ter sofrido violência sexual.

Por Portal O Piauí em 12/07/2023 às 04:46:29

Falhas no atendimento

As lesões descritas pelos laudos e a idade das meninas afetadas indicam que os casos “são altamente suspeitos para violência sexual”, afirma a médica pediatra Luci Pfeiffer, presidente do Departamento de Prevenção e Enfrentamento das Causas Externas da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP).

“Tem que pesquisar a violência sexual, não existe outra possibilidade. Se a família impede [o atendimento], a lei tem que agir”, diz.

Ela aponta várias falhas no atendimento às meninas Jamamadi, como a falta de exames ginecológicos e laboratoriais e de atenção psicológica para investigar o histórico das crianças.

Laudo médico indica lesão oral de HPV em menina Jamamadi de 9 anos (Foto: Reprodução)

Nos casos de crianças indígenas, a lei 13.413/2017 determina que a Funai e a Sesai sejam acionadas, além do conselho tutelar e do Ministério Público Federal, para que acompanhem o processo de escuta protegida, explica Ariel de Castro Alves, advogado especialista em direitos humanos e ex-secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Ao receber a denúncia, a Funai deve verificar se o conselho tutelar investigou o caso. "Na omissão do conselho, a Funai pode encaminhar a denúncia para a delegacia e fazer o boletim de ocorrência, como órgão que zela pelos direitos e garantias dos povos indígenas", diz. O servidor que não tomar tais providências "pode responder por prevaricação", por descumprir suas funções. "É preciso apurar", diz o advogado.

Militarização da Funai

O terceiro caso de HPV entre as meninas Jamamadi foi identificado em 2021, quando uma adolescente de 12 anos foi diagnosticada durante consulta odontológica dentro da aldeia. Trata-se da filha de uma das lideranças da etnia, cujo nome não será revelado para preservar a identidade da menina.

As informações sobre este caso constam de ofício da Funai de 2021, no qual a área técnica informa à coordenação regional sobre os três episódios. Este documento foi assinado um dia antes de ser nomeado um policial militar de Rondônia para coordenar o escritório da Funai em Lábrea.

No governo Bolsonaro, a Funai esteve a maior parte do tempo sob chefia do delegado da Polícia Federal Marcelo Augusto Xavier da Silva. Homem de confiança do ex-presidente, ele conduziu uma gestão classificada de “anti-indígena” por críticos.

No seu mandato, várias coordenações regionais foram ocupadas por militares ou policiais, sobretudo na Amazônia, o que rendeu protestos de indigenistas e entidades sobre a falta de experiência dos indicados para os cargos.

Na coordenação regional em Lábrea, Oliveira Neto foi substituído pelo tenente do Exército Cássio de Oliveira Pantoja, que depois deu lugar ao PM Manoel Arnóbio Teixeira Alves. As investigações sobre os casos não avançaram neste período, segundo apurou a reportagem com servidores da Funai.

Ofício da Funai em 2021 a respeito do terceiro caso de menina Jamamadi com lesão causada por HPV (Foto: Reprodução)

Procurado, o ex-coordenador Oliveira Neto afirmou que deu seguimento à denúncia internamente a respeito das duas irmãs e que esteve na UBS para verificar a situação junto ao conselho tutelar e a um representante da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai, vinculada ao Ministério da Saúde). "Como a Funai não integra o sistema de Justiça, fizemos o encaminhamento no sentido de que as instituições efetivamente responsáveis – a Sesai e o próprio conselho tutelar – dessem andamento ao caso", diz ele.

A Sesai, porém, diz que não foi notificada e que o distrito regional de saúde (Dsei Médio Rio Purus) não localizou qualquer denúncia. O órgão afirma seguir um protocolo para episódios como este, com ações de acolhimento e assistência.

A reportagem não conseguiu contato com Manoel Arnóbio Teixeira Alves e Cássio Oliveira Pantoja.

O conselho tutelar de Lábrea também foi procurado, mas não respondeu quais ações foram tomadas.

O governo do Amazonas, por meio da secretaria de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania, informou que não foi comunicado sobre o caso das crianças Jamamadi. Já a secretaria de segurança pública do estado confirmou que não houve registro de boletim de ocorrência sobre os casos. Leia os posicionamentos.

Influência religiosa

Steve Campbell (sentado, ao centro) em foto ao lado dos Jamamadi, antes de ser expulso da terra indígena por tentar contato com povos isolados (Foto: Divulgação)

Além da omissão dos órgãos públicos, outro motivo que dificultou o atendimento às meninas Jamamadi é o missionário religioso Steve Campbell, da igreja Greene Baptist Church, e sua influência sobre algumas lideranças da etnia, segundo os documentos obtidos por Joio e Repórter Brasil.

Campbell frequenta a região desde a década de 1960, mas foi expulso pela Funai em 2018, após liderar expedição para alcançar o povo isolado Hi-Merimã.

Desde então, a Funai e a Sesai têm enfrentado dificuldades para entrar no território, já que as lideranças dizem que a assistência só poderá ser prestada após o retorno do missionário.

A reportagem esteve na casa de Campbell para solicitar uma entrevista. O missionário negou o pedido, sob a alegação de que receia que suas declarações sejam distorcidas. Disse, também, que seu advogado o orienta a não dar entrevistas.

*Colaborou Murilo Pajolla, de Lábrea (AM)

(Edição: Diego Junqueira)

Reportagem realizada com apoio do Rainforest Journalism Fund (RJF) em parceria com o Pulitzer Center.

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