A Coruripe e produtores rurais responsáveis pelas plantações nas fazendas arrendadas para a usina foram autuados por trabalho análogo à escravidão e tráfico de pessoas. Eles foram questionados pela Repórter Brasil sobre o caso, mas não responderam se irão prestar alguma assistência à família. Nesta terça-feira, 23 de agosto, está marcada uma audiência de conciliação entre a empresa e os representantes da família.
“Esses trabalhadores vêm de uma situação de miséria, para tentar uma remuneração mais digna e acabam se sujeitando [a essas condições]. Mas isso não é voluntário. É um modo de organização do trabalho que faz com que eles se submetam a essa condição”, afirma o auditor-fiscal do trabalho Humberto Camasmie, que coordenou a operação de fiscalização nas duas fazendas.
De acordo com relatórios de fiscalização do Ministério do Trabalho e Previdência, aos quais a Repórter Brasil teve acesso, a saga dos trabalhadores começou em 18 de fevereiro, quando saíram do Maranhão, sob falsas promessas. A primeira a ser quebrada foi em relação à passagem e alimentação, já que eles tiveram de pagar todos os custos da viagem de 3 dias.
Ao chegarem aos alojamentos, perceberam que estavam em uma enrrascada. Um deles ficava em Igarapava (SP), a 150 km das fazendas, localizadas nas cidades de Veríssimo e Campo Florido (MG). Os dormitórios eram extremamente precários, colocando em risco a saúde e a segurança dos trabalhadores. Evaldo*, que abandonou o trabalho antes da fiscalização, conta que ele e seu cunhado André ficaram um mês dormindo no chão até encontrarem um colchão no lixo.
Os trabalhadores contaram à reportagem que ganhavam entre R$ 30 e R$ 40 por hectare plantado – valor insuficiente para sobreviver. “A gente comia ovo, salsicha, o mais barato que tinha. Não dava pra comprar carne, essas coisas mais caras”, conta Evaldo. Segundo os relatórios, os custos com equipamentos de segurança, ferramentas, aluguel, água, luz e refeições também foram pagos pelos trabalhadores, diferentemente do prometido.
A jornada de trabalho era desgastante. Os trabalhadores precisavam pegar os ônibus fretados às 6h – e voltavam para o alojamento somente às 19h, quando não dava mais para enxergar a plantação. Como ganhavam pelo rendimento, quase não tinham descanso. “Só parávamos para almoçar quando a gente já estava morrendo de fome”, afirma Roberto*, amigo de Evaldo. A rotina cansativa era estimulada pelos aliciadores. Segundo o Ministério do Trabalho, eles ganhavam 30% sobre a produção de cada trabalhador.
Entre abril e maio, os administradores das propriedades assinaram Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho (MPT), comprometendo-se a quitar as verbas rescisórias, ressarcir os gastos com transporte, além de cumprir as normas trabalhistas e de adequação de alojamentos. Ao todo, as duas fazendas terão que pagar cerca de R$ 400 mil em danos morais e coletivos.
Com cinco unidades distribuídas por Alagoas e Minas Gerais, a Usina Coruripe está na 58º posição do ranking Forbes Agro 100, que lista as maiores empresas do agronegócio brasileiro. Em seu site, a empresa afirma que há mais de 20 anos fornece açúcar cristal para a Coca-Cola Brasil.
Outra gigante que mantém relações comerciais com a Coruripe é a Ipiranga, uma das maiores redes de distribuição de combustíveis do Brasil. Contratos celebrados entre as duas empresas para a venda de etanol, com vencimentos em 2022 e 2023, somam mais de R$ 100 milhões.
A usina também tem investido no mercado internacional, sendo os Estados Unidos o principal destino das exportações. Nos últimos dois anos, a empresa vendeu mais de 25 mil toneladas para o ASR Group, companhia estadunidense do setor de cana-de-açúcar. O segundo maior comprador no período foi a companhia francesa Louis Dreyfus Company (LDC), que adquiriu 12 mil toneladas de açúcar da Coruripe.
Questionada pela Repórter Brasil sobre as ações a serem tomadas após o caso de trabalho escravo envolvendo fornecedores exclusivos, a Coruripe disse que “está tomando as medidas cabíveis”, mas não quis detalhar as providências adotadas. A usina ressaltou que “repudia todas as práticas que, direta ou indiretamente, desrespeitem qualquer direito dos trabalhadores” e que “na história de quase 100 anos, [ ] nunca houve uma situação como a relatada”. (Leia a nota na íntegra).
A Coca-Cola afirmou que exige dos seus fornecedores a adoção de “práticas responsáveis no local de trabalho”, em linha com sua política de direitos humanos, seus princípios de conduta para o fornecedor. A multinacional, no entanto, não respondeu sobre quais ações serão tomadas sobre o caso Coruripe e nem quais unidades da produtora de açúcar abastecem a empresa.
A Ipiranga, após o contato da Repórter Brasil, suspendeu as operações com a Usina Coruripe “até que os fatos sejam esclarecidos”. A rede afirmou que é comprometida com a promoção dos direitos humanos, que é signatária do pacto contra o trabalho escravo e que repudia que “toda e qualquer forma de exploração de trabalho”.
A LDC disse que “leva as questões de sustentabilidade muito a sério, sempre com o objetivo de operar com os mais altos padrões possíveis e esperando padrões semelhantes dos fornecedores”. A multinacional francesa afirmou que tem como padrão contatar os fornecedores e solicitar respostas sobre alegações de violações aos direitos humanos repassadas à companhia, “trabalhando com eles sempre que possível para garantir reparação e, em casos de descumprimento contínuo, tomando decisões para removê-los de listas de fornecedores aprovados”.
Por email, a ASR afirmou que, após os questionamentos da Repórter Brasil, contatou a Usina Coruripe, que disse ter recebido as alegações de trabalho escravo meses atrás e que, desde então, cancelou os contratos com os fornecedores. À ASR Sugar, a Coruripe afirmou ainda ter criado uma área específica para analisar a conformidade trabalhista dos seus fornecedores de cana-de-açúcar independentes. A empresa americana afirmou ainda ser abastecida exclusivamente pela unidade da Usina Coruripe em Alagoas. (Leia aqui as respostas na íntegra de todas as empresas).
De acordo com integrantes da força-tarefa, a Usina Coruripe é a arrendatária da terra onde as mudas de cana foram plantadas. Contudo, ao invés da própria companhia produzir na área arrendada, opta por fazer dois contratos: um de transferência de responsabilidade de plantio – que permite que outro produtor rural produza cana-de-açúcar no local – e outro de exclusividade de compra e venda com esse produtor. “É uma tentativa de desvincular a responsabilidade”, explica o auditor-fiscal Camasmie.
“O que se verificou não foi uma terceirização no processo produtivo da empresa e, sim, a utilização ardilosa do contrato de parceria rural”, afirma o auditor-fiscal Luis Fernando Duque de Sousa no relatório.
A Usina afirmou que foi “equivocadamente autuada”, fato que, segundo a empresa, já foi esclarecido ao Ministério Público do Trabalho. “Diante disso, na ocasião da auditoria fiscal, foi formalizado acordo entre o MTE [Ministério do Trabalho e Previdência], MPT e os fornecedores de cana-de-açúcar, que se responsabilizaram pelos atos praticados. Nesse pacto, em hipótese alguma, foi atribuída à Usina Coruripe qualquer obrigação de arcar com as consequências do mencionado comportamento, nem mesmo na condição de responsável subsidiário”.
Apesar da afirmação da Usina, o Ministério do Trabalho autuou a empresa por considerá-la responsável pelos trabalhadores. Caso seja condenada administrativamente em duas instâncias, a empresa entrará para a lista suja do trabalho escravo. O cultivo de cana-de-açúcar estava, em 2021, entre as cinco atividades rurais com os maiores números de trabalhadores resgatados, segundo um levantamento do Ministério do Trabalho e Previdência divulgado no início do ano.
*nome fictício