Jovens brasileiros estão em desalento e serão ouvidos sobre soluções para o problema

Segundo pesquisadora, as últimas reformas no país dificultaram a manutenção do jovem na escola e a entrada no mercado de trabalho.

Por Portal O Piauí em 22/07/2023 às 13:45:28
A jovem Nayane Silva (foto) era estudante do primeiro ano do ensino médio quando engravidou da filha, aos 18 anos; ela deu a volta por cima com ajuda de programa público

A jovem Nayane Silva (foto) era estudante do primeiro ano do ensino médio quando engravidou da filha, aos 18 anos; ela deu a volta por cima com ajuda de programa público

Os jovens brasileiros estão em desalento, e é preciso ouvi-los para construir soluções. A análise é da pesquisadora Mônica Peregrino, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), especialista em juventude, mas também está na voz de lideranças juvenis que alertam para o desperdício de talentos, da força e da energia dos jovens.

Em mais uma reportagem da série especial sobre jovens nem-nem, a Agência Brasil ouviu especialistas e jovens que apontaram políticas necessárias para enfrentar a falta de oportunidades que atinge 36% dos jovens brasileiros, segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

"Estudar e trabalhar é uma característica muito singular do jovem brasileiro, trabalhar é uma parte bastante importante da identidade dos jovens, ao contrário de outros países", pontua a professora da Unirio, Mônica Peregrino. No artigo Tendências na Transição Escola-Trabalho, ela apresenta a situação do jovem brasileiro na pesquisa das juventudes Ibero-Americanas. De acordo com o estudo, que ainda será publicado, o jovem brasileiro, principalmente os mais pobres, sofrem ausência de integração.

"Não estudar e não trabalhar é presente em todas as faixas socioeconômicas: se vê que é praticamente residual entre os grupos mais providos, mas três vezes maior nos grupos mais pobres. Não é uma questão de desejo pessoal, esses jovens têm uma dificuldade de engajamento institucional."

O estudo mostra ainda como se dá a transição entre a escola e o mercado de trabalho. "No estudo se vê claramente que a transição para os mais ricos é suave, já essa transposição dos jovens mais pobres, é muito mais abrupta e sem a mediação da possibilidade de estudar e trabalhar", observa Mônica.

São Paulo (SP) - 21/07/2023 - Relatório Education at a Glance, de 2022, mostra que o Brasil é o segundo país na esfera da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) com maior proporção de jovens, com idade entre 18 e 24 anos, que não estudam e nem trabalham, os chamados nem-nem. O país fica atrás apenas da África do Sul. Na faixa etária considerada no relatório da OCDE, 36% dos jovens brasileiros estão sem trabalho. Foto:Paulo Pinto/Agência Brasil
Relatório Education at a Glance, de 2022, mostra que o Brasil é o segundo país com maior proporção de jovens Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

A pesquisadora lamenta, no entanto, que, entre os jovens mais pobres, esta situação de nem estudar, nem trabalhar os deixa à margem da sociedade. "As consequências para os mais pobres, as mulheres, e principalmente entre pretos e parte dos pardos, é que se faz uma transição para a vida adulta por fora dos engajamentos sociais regulares, como escola e trabalho, portanto por fora das políticas públicas, dos direitos de cidadania, que são questões de integração."

Na avaliação de Mônica Peregrino, as últimas reformas no país dificultaram a manutenção do jovem na escola e a entrada no mercado de trabalho. "A reforma do ensino médio, que estabelece um tempo maior de estudo dos jovens, está, em contrapartida, diminuindo significativamente, em nível dos estados, a escolarização regular noturna, isso é empurrar esses indivíduos que estavam tentando se integrar", adverte. "Já a reforma trabalhista precarizou um trabalho que já era bastante problemático e piorou a qualidade do trabalho para os jovens."

Diante disso, o que se vê é o desalento da juventude. "Existe um movimento em busca de integração, mas existe um desalento juvenil, um cansaço, uma falta de horizonte, estes últimos anos cobram seu preço, e os efeitos disso é que há muito mais dificuldades desses jovens para se integrarem às possibilidades plenas da sociedade", considera a professora.

Para desenvolver ações eficazes, segundo ela, é preciso ouvir os jovens. "Temos que ouvir os jovens e as suas necessidades específicas. Por exemplo, muitas mulheres jovens têm dificuldades de estudar porque não têm com quem deixar suas crianças, então precisamos de creches ou espaços que possam comportar os cuidados dos filhos dessas mulheres, seria um elemento importante."

Ações de incentivo e estímulo ao aprendizado também podem ter bons resultados, opina Mônica Peregrino. "Ter uma política de reavivamento de ensino de jovens e adultos seria outro elemento importante, porque essas pessoas que estão à beira da sociedade entram nesses espaços pelas instituições que conseguem compor as beiradas. São necessárias políticas de suporte para a educação, para o trabalho e de suporte à composição entre estudo e trabalho, principalmente que garantam que o jovem vai poder estudar e trabalhar ao mesmo tempo."

Políticas de permanência

Na opinião da recém-eleita presidente na União Nacional dos Estudantes (UNE), Manuella Mirela, é preciso aproveitar o momento para avançar economicamente e assim, envolver os jovens.

"O Brasil atravessa a sua janela demográfica - momento em que a população economicamente ativa é a maior que todo o restante - e é neste momento que o país pode produzir, avançar economicamente, criar reservas para quando entrarmos no ônus demográfico previsto para a próxima década", ressalta.

"Os chamados nem-nem representam uma grande preocupação e é, sobretudo, um grande desperdício da força e energia da juventude, tanto para o jovem, que se vê em meio ao trabalho precarizado para gerar renda e sem perspectivas, quanto para o desenvolvimento nacional para essa e as próximas gerações", completa.

Para Manuella, o momento é de retomar os incentivos aos jovens. "Precisamos de agenda de retomada para o trabalho decente, para conter o avanço da 'uberização', programas para conter evasão escolar e universitária - as políticas de permanência - e um ensino médio com foco em formação técnica sem negligenciar as disciplinas tradicionais", afirma.

Presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Jade Beatriz ressalta a evasão do jovem da escola. "O ensino médio é um gargalo educacional, em que temos índices de evasão muito altos - 500 mil por ano. A ideia é que essa etapa aprimore o pensamento crítico, ofereça base para as graduações e prepare para o mundo do trabalho. Porém, não acontece. Muitos estudantes abandonam a escola para gerar renda para suas famílias, porém acabam caindo no trabalho precarizado, autônomo, sem direitos trabalhistas."

Jade lamenta que a condição precária e, portanto, fora das estatísticas, levam esses jovens para essa situação. "Assim, se enquadram no nem-nem, quando, na verdade, estão vivendo o extremo da 'uberização' - e sem qualquer condição de continuar a formação, quanto mais seguir para a graduação."

A solução, no entendimento dela, é o investimento na educação. "Pensando na etapa do ensino médio, o Brasil precisa de investimentos em escolas técnicas, para conter essa evasão e garantir que esse estudante possa migrar do trabalho precarizado para o decente, obter renda, ser força de trabalho para o desenvolvimento nacional e ainda seguir para o ensino superior".

Edição: Juliana Andrade


VIRANDO O JOGO, O EXEMPLO DO CEARÁ

A jovem Nayane Silva (foto) era estudante do primeiro ano do ensino médio quando engravidou da filha, aos 18 anos. "Estudei até quando eu estava com seis meses de gestação, a barriga foi crescendo, não tinha como subir uma rampa que dava acesso à escola, então parei os estudos", conta ela, que passou quatro anos fora da escola, até que conheceu o projeto Virando o Jogo em Fortaleza. Aluna da quinta edição do projeto, a jovem mãe está fazendo curso de salgadeira.

"Me senti muito acolhida e fui gostando cada vez mais das aulas, com os psicólogos, fui saindo do sedentarismo, criando novos hábitos e conhecimentos. Hoje sou salgadeira, amo culinária. O projeto tem me ajudado bastante, tanto psicologicamente, como fisicamente, com os esportes oferecidos saí da obesidade e do sedentarismo, agora sou apaixonada por esporte e sou saudável", conta Nayane, de 23 anos.

No momento, ela está sem emprego. "É muito difícil, faltam oportunidades!". Mas, agora reinserida no Centro de Educação de Jovens e Adultos (Ceja), onde estuda as disciplinas dos três anos do ensino médio, quer prestar concurso para a Guarda Municipal de Fortaleza. "Vou me preparar para o próximo concurso, não gostava de estudar e hoje tenho prazer em aprender. Vou estudar e não vou parar até chegar a hora da aprovação."

O jovem Carlos Daniel Carneiro de Sousa é colega da Nayane no curso de salgadeiro. Ele terminou o ensino médio e no momento está sem trabalhar, mas o projeto o motiva. "Minha vida se encontrava meio sem sentido, seguia apenas por seguir. Havia parado em 2020 no 1° ano do médio e foi no período da pandemia, estava bem desinteressado na vida. Mas, a experiência no Virando o Jogo tem sido de aprendizado e de autoconhecimento, um misto muito grande. A vida ainda está um pouco turbulenta, mas me sinto muito melhor, em relação ao início do projeto mudei bastante."

Aos 22 anos, ele sonha em montar seu próprio negócio. "Quero ter um restaurante ou algo relacionado a gastronomia". Atualmente ele estuda por conta própria em casa para fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). "Meus planos atuais são trabalhar em uma cozinha e adquirir conhecimento, mais na frente fazer uma faculdade e em alguns anos abrir meu negócio."

Mateus Santos da Silva foi aluno da primeira edição. Fez curso de assistente administrativo e, durante a edição, foi reinserido no EJA semipresencial e aprovado na seleção de jovem aprendiz no Banco do Nordeste. Mas, antes do projeto, não era assim.

20/07/2023 - Sonhos das juventudes: políticas ajudam a potencializar trajetórias e criar oportunidades - Na foto Mateus Solano que foi efetivado no banco depois de um ano e meio como jovem aprendiz e ainda cursa duas faculdades ao mesmo tempo.
Mateus Santos foi efetivado no banco depois de um ano e meio como jovem aprendiz - Arquivo pessoal/Divulgação

"Eu não trabalhava, eu não estudava e ficava só em casa, abandonei os estudos porque arranjei um trabalho, depois fiquei sem os estudos e sem o trabalho". Mas o projeto transformou a vida dele. "Consegui ingressar no Ceja para concluir os estudos, tive direito a vários cursos e à ajuda de custo, que dava para ajudar em casa. Foi uma experiência muito boa, os professores são ótimos!"

Mateus foi efetivado no banco depois de um ano e meio como jovem aprendiz e ainda cursa duas faculdades ao mesmo tempo. "Estou no segundo semestre da faculdade de administração e de processos gerenciais também."

Aos 22 anos, ele também quer fazer concurso público. "Meu sonho é terminar as duas faculdades, conseguir um bom emprego e ainda pretendo passar em concurso público e vou passar!".

Nayane e Carlos estão no projeto Virando o Jogo, que em Fortaleza e em Sobral chegou a 5.180 jovens cearenses que não estudam e nem trabalham, ou, como o jovem Mateus, não estudavam e não trabalhavam e tiveram a vida transformada. A iniciativa do governo do estado do Ceará envolve órgãos das áreas de educação, da segurança pública, a Fundação de Amparo à Pesquisa, além do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac).

A história desses e de outros jovens foi registrada no livro-reportagem Aqui Contém Sonhos: Narrativas em torno do Projeto Virando o Jogo.

O projeto possibilita acesso gratuito a cursos profissionalizantes certificados pelo Senac e, paralelamente, promove ações de reinserção escolar junto a quem interrompeu os estudos e tem interesse em voltar a estudar, reconduzindo cada jovem participante evadido ao ensino regular.

Ao vestir a camisa do Virando o Jogo, o "botão" da virada é acionado em diferentes fases: ao longo do processo formativo, participantes do projeto Virando o Jogo passam por formação cidadã, qualificação profissional, ações comunitárias e atividades socioculturais, além de adquirir noções de empreendedorismo e gestão financeira. Contam ainda com atendimento psicossocial e acompanhamento familiar, quando necessário, assim como ajuda de custo, vale-transporte, material didático, uniforme, lanche e outros benefícios sociais.

Quem avançou em todas as "casas" do projeto Virando o Jogo sai com certificado técnico-profissional assinado pelo Senac, perspectiva de encaminhamento para estágios ou empregos, pequenos negócios iniciados ou em planejamento e um currículo mais encorpado, o que resulta em chances mais sólidas para ingressar no mercado de trabalho.

Com recursos do Programa de Prevenção e Redução à Violência do Estado do Ceará (PReVio), o governo do estado afirma que em 2023 o projeto vai chegar a três municípios cearenses: Caucaia, Maracanaú e Maranguape. Em 2024, serão ainda acrescidos Itapipoca, Quixadá, Iguatu, Crato e Juazeiro do Norte. Com isso, a estimativa é atingir a marca de 20 mil adolescentes e jovens atendidos em todo o estado.

Avaliação

A iniciativa do projeto Virando o Jogo levou a um grupo de pesquisadores da Universidade Federal do Ceará e da Universidade de Fortaleza (Unifor) a analisá-lo, assim como a situação do jovem que está fora da escola e do trabalho. Na visão do pesquisador Gustavo Raposo, primeiro é preciso pensar o sentido do termo nem-nem.

"Nem estuda, nem trabalha, essa ideia é de que esse jovem está numa situação muito vulnerável, porque ele deveria estar estudando e não está. Ao não estudar prejudica o futuro profissional dele, o futuro da renda e também não estar trabalhando faz com que ele fique ainda mais vulnerável, exposto ao recrutamento para atividades ilícitas e isso acaba se transformando num duplo efeito de risco. E tem um contingente muito grande de jovens que estão nessa situação", lamenta o pesquisador, que trabalha com direitos humanos e pesquisa empírica.

O pesquisador explica que é preciso analisar o que faz esse jovem estar fora da escola. "Tem muitas questões relacionadas à violência urbana, deslocamento, efeito do controle das organizações criminosas sobre os territórios, uma infinidade de possibilidades e aspectos que podem ser tratados pra pensar por que esse jovem não está dentro da escola."

O ambiente escolar também influencia para este abandono. "Outro aspecto importante diz respeito à própria escola: por que não consegue manter esse jovem dentro da escola? Será que a escola é ruim, será que tem violência dentro dessa escola, será que ela não está oferecendo uma formação adequada para esse jovem, que faça com que ele se sinta estimulado e atraído para ficar dentro da escola? A dinâmica também relacionada à escola que tem que ser observada."

Quanto à dimensão profissional, o pesquisador frisa que o jovem pode ocasionalmente trabalhar, embora precariamente. "Ele está fazendo bicos, se movimentando, às vezes transitando entre atividades lícitas, como entrega, e ilícitas, fazendo pequenos trabalhos associados ao mundo crime, tem uma situação que esse jovem que a gente diz que não trabalha, na verdade ele está se virando de todo jeito para sobreviver, mesmo que não tenha uma atividade fixa permanente."

Para Raposo, é preciso refletir que esse jovem é supervulnerável em todos os aspectos. "Essa situação destrói boa parte das perspectivas de futuro que ele tem e cria uma situação de vulnerabilidade que pode gerar riscos associados, inclusive à segurança e a atividades criminosas." O pesquisador defende que esse jovem precisa ser cuidado.

"Precisa ser protegido, precisa haver investimentos, programas, que tragam esse jovem de volta para escola e, ao mesmo tempo, trabalhe a inserção ou a reinserção profissional dele. O nem-nem tem que ser acolhido porque ele é um jovem que tem potencial enorme, eles são criativos, têm projetos, sonhos, ideias inovadoras, mas estão, em grande medida, sem a capacidade de enxergar naquele horizonte que ele vive, ver o que ele pode fazer para sair daquilo."

Para tanto, os projetos podem mudar a situação, analisa Raposo. "Os projetos mostram opções, caminhos, abrem uma porta, induzem esse movimento inercial que acaba fazendo com ele seja tragado por essa situação de vulnerabilidade em que vive."

O pesquisador alerta, no entanto, para a visão negativa que há desses jovens. "É preciso muito cuidado com a ideia do jovem problema. Tem muita gente que fala: 'Vamos investir para que eles não virem 'ladrões'. Cuidado com essa abordagem. A abordagem do acolhimento, do apoio, da compreensão dos problemas que vivem, da oportunidade e da potencialidade que esse jovem tem, se for bem trabalhada, é adequada, é a perspectiva que a gente prefere atuar."

Ele observa que falta de perspectiva dos jovens também não é um problema só brasileiro. "É é muito presente em outros países, essa falta de oportunidades, de perspectivas, o mercado de trabalho que não consegue absorver esses jovens, especialmente jovens negros, que vêm de grupos minoritários no exterior, principalmente afetando filhos de imigrantes, então não é um problema só brasileiro. Mas no Brasil é um problema de dimensão alarmante."

Edição: Juliana Andrade

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