Mulher é resgatada após 72 anos de trabalho escravo doméstico no Rio

Por Portal O Piauí em 13/05/2022 às 12:13:15

“Em casos como este ouvimos sempre a afirmação de que a vítima é "como se fosse da família". Mas para essa pessoa da família não foi permitido estudo, nem laços de amizade externos ou mesmo conduzir a própria vida. Essa pessoa da família dorme em um sofá, em um espaço improvisado como dormitório em uma antessala do quarto da empregadora, de quem ela era cuidadora”, diz.

Na avaliação de Yasmim França, coordenadora e psicóloga social do projeto Ação Integrada, muitas vezes os trabalhadores têm a compreensão de que não são membros da família, mas avaliam que, em um cenário sem opções, essa foi a única que tiveram. “Isso gera um sentimento de lealdade, há uma servidão por dívida de gratidão”, afirma.

Durante mais de sete décadas, a trabalhadora não teve contato com outro tipo de relacionamento social, não teve protagonismo sobre sua vida, recebendo tarefas e ordens de terceiros. Sua vida passou a ser uma “sombra”, como analisa Lyra. Diante disso, o mundo do “lado de fora” pode ser desafiador.

Pessoas resgatadas após longos períodos não raro pedem para voltar ao convívio dos empregadores porque aquela é a única vida que conheceram. Isso tem sido usado por patrões como justificativa de que a relação entre eles era normal e saudável.

A trabalhadora de 84 anos declarou à fiscalização estar preocupada com a empregadora, que ficaria sozinha e sem ninguém para cuidar dela. Ela, que não se via como alguém que foi escravizada, chegou a pedir para voltar.

Yasmim França, que está acompanhando o caso da trabalhadora, diz que o pós-resgate é um momento para que as vítimas pensem em projetos de vida e fortaleçam vínculos familiares e comunitários. Uma caminhada longa.

Vale ressaltar que, de acordo com o ordenamento jurídico nacional e os tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, o consentimento da vítima é irrelevante para configurar trabalho escravo.

“No trabalho escravo doméstico, o abuso de vulnerabilidade é levado a um extremo que pode dificultar o reconhecimento da condição pelas próprias vítimas e mesmo a atuação dos órgãos de repressão. É importante a atuação do Estado para a necessária assistência e proteção a fim de que elas sejam acolhidas e possam sair dessa situação”, avalia o procurador do Trabalho, Thiago Gurjão.

Outras cinco vítimas

Dos resgatados pelos grupos especiais de fiscalização móvel desde o início do ano, cinco mulheres estavam em trabalho escravo doméstico nos Estados do Rio Grande do Sul, Paraíba, Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Há outras ações em andamento.

Das 1.937 pessoas em situação de escravidão resgatadas no país em 2021, 27 vítimas estavam no serviço doméstico. Em 2020, haviam sido apenas três.

Ao contrário do trabalho para exploração econômica, como aquele em fazendas de gado e carvoarias, que costumam durar o tamanho de uma empreitada, ou seja, de meses a alguns poucos anos, é comum que casos de escravidão doméstica registre longos períodos de relacionamento entre patrões e empregados.

Casos como o de uma mulher de 89 anos resgatada em Santos (SP) e outra, de 61 anos, libertada em Salvador (BA), após terem permanecido 50 anos na escravidão doméstica, têm sido cada vez mais comuns. Não que o crime esteja aumentando, mas as repercussões dos casos levam a novas denúncias.

Uma das ações em andamento foi o caso de uma mulher que trabalhou por 32 anos como empregada doméstica, resgatada da residência de um pastor em Mossoró (RN). Segundo fiscais do trabalho, ela chegou ao local ainda adolescente, com 16 anos, e sofreu abuso e assédio sexual do empregador.

“Em razão da grande repercussão do resgate da trabalhadora doméstica Madalena Gordiano no final de 2020 em Patos de Minas, o número de denúncias aumentou”, afirmou o auditor fiscal Maurício Krepsky, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) das Secretaria de Inspeção do Trabalho.

Nesta quinta (12), o Ministério Público Federal denunciou quatro membros de uma mesma família por reduzir Madalena à condição análoga à de escravo durante 38 anos, mas também por violência doméstica e roubo.

“A gente tem impressão que são gerações de mulheres que viveram as mesmas coisas e, hoje, estão vindo à tona o tempo todo. Vemos as histórias se repetindo, muitas vezes com os mesmos nomes, a mesma idade, a mesma cor”, afirma Yasmim França, do projeto Ação Integrada.

Trabalho escravo no Brasil

Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

O grupo especial móvel de fiscalização, que completa 27 anos neste mês de maio e é a base no combate a esse crime no país, conta com a participação da Inspeção do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho, da Polícia Federal, da Polícia Rodoviária Federal, do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União.

Os 58 mil trabalhadores resgatados estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho doméstico.


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