Os créditos de carbono gerados pelo projeto e utilizados entre 2020 e 2023 equivalem a cerca de 6 milhões de dólares (ou R$ 30 milhões em cotação de 2024), segundo uma estimativa da consultoria AlliedOffsets, baseada em Londres e cuja metodologia se baseia em preços do mercado. A área a ser protegida englobava um total 26 mil hectares de preservação na Amazônia – incluindo a Fazenda Sipasa, onde foram resgatados os trabalhadores.
Segundo José Weyne Nunes Marcelino, auditor fiscal do Trabalho que coordenou a operação de fiscalização, eles estavam alojados em um galpão de madeira "em condições extremamente precárias, com piso caindo e partes do telhado faltando".
O relatório de fiscalização, acessado pela Repórter Brasil, indica ainda que os quartos do alojamento eram tão quentes que os empregados preferiam dormir em redes na varanda. "No alojamento da Sipasa, a gente dormia em rede mesmo, não tinha roupa de cama, só a que eu levava mesmo. Ventilador? Isso nunca existiu onde eu trabalho", confirma Francisco*, operador de motosserra de 70 anos e um dos resgatados pela operação.
Também não havia água nos banheiros – construídos do lado de fora do galpão. Segundo a fiscalização, os trabalhadores tomavam banho de mangueira e faziam as necessidades fisiológicas no mato. A cozinheira, única mulher entre os resgatados, precisou improvisar um banheiro dentro do quarto de madeira para tomar banho com alguma privacidade.
Em resposta à reportagem, a Uber afirmou que investe apenas em projetos "certificados, rastreáveis e auditáveis" por organizações reconhecidas internacionalmente. Já a Audi afirmou que irá "acompanhar seriamente as informações" enviadas pela Repórter Brasil, mas que não poderia fornecer mais esclarecimentos no momento.
A Verra, organização certificadora do projeto, informou que após o contato da reportagem, decidiu "inativar, de imediato, o projeto". Leia os posicionamentos na íntegra aqui. Foram enviados questionamentos para o advogado de Márcio Pinto Lisboa Pinheiro, dono da Sipasa Seringa Industrial do Pará S/A, mas não houve retorno até o fechamento desta reportagem.
A Audi utilizou os créditos de carbono do Projeto Maisa em julho de 2023, um mês após o resgate dos trabalhadores, para compensar as emissões dos seus carros de corrida na edição de 2022 do Rally Dakar. A utilização dos créditos pela Uber ocorreu em agosto de 2023, também logo após a ação das autoridades brasileiras na fazenda.
Outras empresas também utilizaram créditos oriundos do Projeto Maisa no ano passado, contudo antes do resgate. O iFood compensou as emissões de carbono de blocos de carnaval patrocinados pela empresa, e a Giorgio Armani Spa usou os créditos do Projeto Maísa para neutralizar as emissões de um desfile da grife em Dubai. A Nike também utilizou créditos da área em suas operações.
A integridade do Projeto Maísa sofreu abalos em 2021, quando foi identificada a ocorrência de desmatamentos dentro da área, segundo reportagem dos portais Unearthed e Climate Home News. Mas como o projeto só foi definitivamente encerrado agora, créditos gerados em 2020 e adquiridos até 2022 continuaram ativos e foram usados para compensar emissões posteriores.
"Se a empresa compra [o crédito], também contribui para as violações dentro dessa dessa propriedade e está fomentando o trabalho escravo", pontua Andréia Barreto, da Defensoria Pública do Estado do Pará (DPE-PA). Para a defensora, o flagrante "já demonstra que o projeto não tem sustentabilidade social". No ano passado a DPE pediu a suspensão de projetos de crédito de carbono em cinco territórios tradicionais em Portel (PA) por indícios de grilagem de terras.
Em nota, o Ifood ressaltou que "o montante [de créditos comprados pelo iFood] referente ao projeto citado representou menos de 0,002% do seu total emitido", e disse estar comprometida em conduzir seu negócio com responsabilidade, ética e integridade. Leia o posicionamento completo das empresas aqui.
A Giorgio Armani e a Nike não responderam até o fechamento desta reportagem. O espaço permanece aberto para suas manifestações.
Projetos como o Maísa avançam a passos largos na Amazônia, mas ainda sem regras estabelecidas. O Brasil, no entanto, tem caminhado em direção à regulação do mercado.
Em junho de 2023, o governo retomou a Comissão Nacional para REDD+ – sigla para Redução de Emissões Provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal, que engloba os chamados projeto do mercado voluntário de carbono, em que empresas e pessoas físicas podem operar. É este o perfil do Projeto Maísa, cujo nome técnico completo é Projeto Maísa REDD+.
A Comissão Pastoral da Terra (CPT) vê com receio o avanço de projetos de REDD+. Em nota enviada à Repórter Brasil, a coordenação executiva da campanha contra o trabalho escravo afirma que é preciso "alertar e buscar responsabilizar os compradores desses créditos de carbono sobre a real situação de onde brotam esses novos 'produtos comerciais'". A íntegra pode ser lida aqui.
Em dezembro do ano passado, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que prevê a implantação de um mercado de carbono regulado no país – uma modalidade diferente do negócio, que envolve governos, não o setor privado. A iniciativa também foi criticada por organizações da sociedade civil. "O projeto oficializa o faroeste de carbono florestal no Brasil", disse à época Stela Herschmann, coordenadora-adjunta de Política Internacional do Observatório do Clima em um comunicado de imprensa divulgado pela organização.
Edição: Naira Hofmeister