Estatuto da Pessoa Idosa faz 20 anos neste domingo e demanda revisão para beneficiar todos os grupos

Para pesquisadora, obrigações do Estado precisam ser reforçadas: Ă© preciso avançar na defesa do estatuto e de todos os direitos que estão ali assegurados

Por Portal O Piauí em 01/10/2023 às 09:38:36

Da vida de jovem à terceira idade, foi como um instante. Na adolescĂȘncia, a mineira Maria de FĂĄtima Lopes sonhava ser professora, mas o pai proibiu. Ele disse à filha que, como mais velha, deveria largar a escola no ensino fundamental para ajudar a cuidar dos seus oito irmãos. Aos 21, pensou em voltar à escola. Dessa vez, a proibição veio do marido. Afinal, para ele, mulher tinha como primeiro dever ficar com os filhos. O primeiro trabalho foi aos 28 como doméstica. Ela nunca mais voltou à escola, a não ser para retirar o lixo dos outros, lavar o chão, limpar a lousa e a parede.

Aos 60 anos de idade, a nova idosa, mulher negra, que se mudou para o ParanoĂĄ, uma região periférica do Distrito Federal, ainda tem sonhos. "Fico triste quando me chamam de velha". Aos finais de semana – os raros dias em que não estĂĄ trabalhando como auxiliar de limpeza para uma empresa em BrasĂ­lia –, precisa cuidar dos netos. Durante a semana, ela vive sozinha em casa depois que volta da lida, trabalhando das 6h às 15h. "Tem hora que bate a solidão. Me arrependo em não ter cuidado um pouco mais de mim".

AliĂĄs, cuidados e direitos são palavras que se repetem no texto do Estatuto da Pessoa Idosa, documento que completa, neste domingo (1Âș), 20 anos. Quando foi aprovado, a população idosa no Brasil era de aproximadamente 15 milhões. Duas décadas depois, são mais de 33 milhões de pessoas. Os desafios com pessoas em vulnerabilidade ainda são do tamanho de um paĂ­s diverso como o Brasil, conforme explica a pesquisadora Ana Amélia Camarano, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

"A própria Constituição (1988) fala que os pais tĂȘm que cuidar dos filhos e os filhos devem cuidar dos pais. Mas, na verdade, o que se tem é que as mulheres são as principais cuidadoras. Mas, depois, não tem quem cuide delas", afirma.

Essa relação de gĂȘnero abrange disparidades e caracterĂ­sticas próprias que expõem machismo e racismo na sociedade. "As mulheres, por exemplo, vivem mais do que os homens. Mas elas passam por um tempo maior de fragilidades fĂ­sicas, mentais, cognitivas. As mulheres negras estão entre as mais vulnerĂĄveis dentro do grupo de idosos", explica.

Mesmo sendo muito importante como conquista, a pesquisadora defende uma revisão do estatuto em função das profundas mudanças da sociedade brasileira. Uma crĂ­tica que ela faz refere-se ao documento considerar a população idosa homogĂȘnea. "Diferenças por raça, gĂȘnero e classes sociais deveriam ser abordadas no estatuto".

Outra ponderação feita é que o documento atribui responsabilização criminal para famĂ­lias que não cuidam dos idosos, mas que não hĂĄ a mesma eficĂĄcia para o papel do Estado.

Uma década a mais

Para exemplificar a diversidade de realidades, a pesquisadora Ana Amélia Camarano adiantou à AgĂȘncia Brasil dados de uma pesquisa que ela estĂĄ concluindo para compor o Atlas da ViolĂȘncia, a ser divulgado neste mĂȘs de outubro.

"Com base nos dados de 2021, idosos não negros morrem 6,4 anos mais tarde do que os negros. Agora, se vocĂȘ considera uma mulher não negra, o homem negro vive 10,9 anos a menos. O Estatuto fala que os idosos tĂȘm direito à vida, mas o alcance a esse direito é diferenciado". Ela acrescenta que a mulher negra morre 4,9 anos mais cedo do que a não negra.

Além da população negra, a pesquisadora enfatiza que outros grupos vulnerabilizados precisam ser especialmente protegidos pelo Estado, como é o caso de idosos da comunidade LBGT. "As pessoas trans, por exemplo, precisam ser assistidas. Existe ainda muito preconceito e elas também vão precisar de cuidados. São populações marginalizadas a vida inteira que sofrem violĂȘncias ao longo da vida".

Menos oportunidades

O secretĂĄrio da Pessoa Idosa, Alexandre Silva, concorda que o desafio do Estado estĂĄ relacionado principalmente ao atendimento dos direitos dos mais vulnerĂĄveis. Ele sublinha que esse segmento é o grupo social que mais cresce em nosso paĂ­s e que mais crescerĂĄ nos próximos anos. "O desafio maior é garantir que todos os grupos sociais, incluindo pessoas pretas, pardas, LGBTQIA+, ribeirinhas, quilombolas, ciganas, privadas de liberdade possam ter os mesmos direitos para envelhecer".

Para ele, o estatuto foi fundamental para garantir as polĂ­ticas pĂșblicas vigentes e os programas de assistĂȘncia aos idosos. "Falar da pessoa idosa, sem dĂșvida, é entender que hĂĄ papéis que cabem aos governos federal, estadual e municipal, à comunidade e à famĂ­lia para atender melhor essa pessoa". Silva entende que alguns grupos mais vulnerĂĄveis tĂȘm menos oportunidades de envelhecer com dignidade.

A negação ao envelhecer, inclusive, começa muito antes, até na infância. O secretĂĄrio também entende que deve ser considerada a possibilidade de uma revisão do Estatuto da Pessoa Idosa. "A gente tem, por exemplo, uma situação bem real do aumento da violĂȘncia patrimonial e financeira, aumento da longevidade, desafios do campo profissional e necessidade de inclusão digital próprios de nossa época", afirma Alexandre Silva.

"É preciso avançar"

Autor da lei aprovada em 2003, o senador Paulo Paim (PT-RS), admitiu, em entrevista à AgĂȘncia Brasil, que é possĂ­vel haver revisões do estatuto, mas ele crĂȘ que os parlamentares tĂȘm demonstrado atenção com as atualizações do documento. "Algumas questões foram aprimoradas e hoje entendo que estĂĄ atualizado. Mas sempre digo que não tem polĂ­tica perfeita. Toda a ideia que venha para proteger o idoso é muito importante".

Ele cita a necessidade de valorização do salĂĄrio mĂ­nimo, considerando que se trata de uma massa populacional que, em sua maioria, ganha no mĂĄximo dois salĂĄrios.

"É preciso avançar na defesa do estatuto e de todos os direitos que estão ali assegurados. O Brasil teve um aumento de 97% nos registros de violações dos direitos humanos contra a pessoa idosa no primeiro trimestre de 2023". No entender do senador, isso ocorre pela maior possibilidade de realização de denĂșncias via ministérios pĂșblicos e o serviço do Disque 100.

Para contextualizar, o parlamentar de 73 anos explicou que o Japão é um exemplo em que os direitos dos idosos são tratados intensamente com as crianças na escola. "A polĂ­tica de combate a todo tipo de preconceito em relação ao idoso e de violĂȘncia tem que ser aprimorada. Eu diria que o estatuto trouxe luz a essa parcela da população que estava esquecida".

Idosos tĂȘm dificuldade para acessar BenefĂ­cio de Prestação Continuada

As pessoas idosas tĂȘm direito a uma garantia mĂ­nima de renda, prevista tanto no Estatuto do Idoso, de 2003, quanto na Lei Orgânica da AssistĂȘncia Social, de 1993. Esse direito é assegurado pelo BenefĂ­cio de Prestação Continuada (BPC), pago a quem tem mais de 65 anos e comprove ter renda de até um quarto de salĂĄrio mĂ­nimo.

No valor de um salĂĄrio mĂ­nimo, o BPC é pago mensalmente. Atualmente, segundo dados disponibilizados pelo Ministério da PrevidĂȘncia Social, 2,4 milhões de idosos recebem o benefĂ­cio. Em 2021, eram pouco mais de 2 milhões.

Profissionais e entidades que atuam com essa população relatam, no entanto, que, muitas vezes, as pessoas tĂȘm dificuldade em acessar o benefĂ­cio.

"Na gestão do governo federal passado, houve um corte muito grande no orçamento destinado ao SUAS [Sistema Único de AssistĂȘncia Social], de uma forma geral à polĂ­tica de assistĂȘncia social, o que fez precarizar muito o atendimento nos equipamentos dessa polĂ­tica, ao mesmo tempo em que houve também, o que jĂĄ é pĂșblico, um empobrecimento muito grande da população. Ou seja, hĂĄ uma maior busca pelos serviços e, ao mesmo tempo, uma fragilidade desses equipamentos", avalia a diretora do Conselho Federal de Serviço Social, Angelita Rangel.

Angelita diz que houve redução no atendimento presencial, o que levou as solicitações de benefĂ­cios a serem feitas cada vez mais por canais remotos. Porém, muitos idosos não tĂȘm acesso a computadores ou celulares para fazer os pedidos, ou não tĂȘm os conhecimentos necessĂĄrios para isso, destaca a assistente social. "Isso faz recorrer a intermediações, que cobram por esse serviço, que antes era ofertado gratuitamente", ressalta.

A diretora do Conselho Federal de Serviço Social vĂȘ, no entanto, um esforço do atual governo em tentar melhorar a situação. "O governo, no nosso entendimento, vem fazendo esforços para destinar mais recursos, mas ainda não conseguiu recuperar [a qualidade do atendimento]." Ela chama a atenção para a precarização do atendimento nas agĂȘncias do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que estĂĄ com quadro muito reduzido para o atendimento presencial, com os servidores sendo destinados basicamente ao atendimento remoto", acrescenta.

O coordenador de projetos da ONG Rede Rua, Alderon Costa, enfatiza que as informações sobre o direito ao benefĂ­cio e como ter acesso a ele precisam ser mais bem divulgadas. "Ainda falta muita informação. Essas informações ainda precisam ser mais publicizadas."

Na cidade de São Paulo, Costa diz que hĂĄ uma situação semelhante à descrita por Angelita, com a redução da oferta de atendimento presencial. "HĂĄ um desmonte do serviço social", afirma.

O coordenador da organização não governamental lembra ainda a desatualização do do Cadastro Único de Programas Sociais (CadÚnico). O sistema é usado para acessar o BPC e diversos outros programas sociais. "São programas de uma importância absurda para a sobrevivĂȘncia de milhares de pessoas", destaca sobre o impacto do BPC, do Bolsa FamĂ­lia e de outros benefĂ­cios nas famĂ­lias menos protegidas socialmente.

O Ministério PĂșblico de São Paulo ingressou com ação civil pĂșblica para que a prefeitura de São Paulo atualize o CadÚnico. A partir dos dados do Observatório Brasileiro de PolĂ­ticas PĂșblicas com a População em Situação de Rua, a promotoria aponta que o Ă­ndice de atualização do cadastro na capital paulista estĂĄ abaixo da média nacional.

A Secretaria Municipal de AssistĂȘncia e Desenvolvimento Social afirma que tem avançado com a taxa de atualização do CadÚnico na cidade de São Paulo. Segundo a pasta, foram contratados novos funcionĂĄrios e ampliou-se o nĂșmero de unidades móveis para fazer esse atendimento.

A reportagem da AgĂȘncia Brasil entrou em contato com o INSS e aguarda resposta.

Edição: NĂĄdia Franco

Edição: Marcelo Brandão

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