Agenda 2023: organizações de direitos humanos elegem reforma agrária e "revogaço das armas" como prioridades

Por Portal O Piauí em 07/12/2022 às 12:41:13

No entanto, Conaq (Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos), CPT (Comissão Pastoral da Terra), MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) projetam quatro anos desafiadores para as pauta dos direitos humanos no próximo governo – sobretudo no contexto do campo. Entre os desafios estão a alta demanda por investimentos para reconstrução de estruturas, o sucateamento de políticas públicas e expectativa de baixo orçamento. Tudo isso diante de uma conjuntura política mais conservadora do que a que foi encontrada pelo PT em gestões anteriores. 

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Para Marcelo Chalréo, conselheiro do CNDH, Lula terá de lidar com uma direita mais consolidada e com uma parte do Congresso Nacional que não deverá apoiar suas iniciativas. “Também não temos ventos favoráveis no cenário internacional, com uma série de conflitos e restrições comerciais”.

Chalréo também alerta para o fato de Bolsonaro estar entregando uma administração completamente dilapidada. “Os órgão públicos e as agências de Estado, que já vinham passando por dificuldades, foram destroçadas, assim como as agendas mais próximas dos movimentos sociais, quilombolas e indígenas, como nos casos da Fundação Palmares, do Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] e da Funai [Fundação Nacional do Índio]. A Previdência Social também está quebrada. A situação da máquina pública é extremamente ruim”. 

Apesar da quantidade e complexidade dos problemas deixados pela extrema-direita, as cinco organizações ligadas a direitos humanos ouvidas pela reportagem elencaram as pautas que consideram prioritárias para que o governo Lula coloque em prática uma agenda em prol da reconstrução do país:

1. Promoção da reforma agrária

Em seu mandato, Jair Bolsonaro substituiu a reforma agrária pela entrega de títulos a assentados. Praticamente sem desapropriar terras para distribuí-las aos trabalhadores rurais, seu governo promoveu uma onda de emissões de títulos de propriedade privada para quem já tinha posse de suas terras, por meio do Incra. Na prática, a política estimulou a venda de lotes pelos assentados e o consequente retorno das terras para o latifúndio. Isso também acabou colocando terras públicas no mercado – o que contraria a essência da reforma agrária. 

“Essa medida ainda retira do Estado a responsabilidade pela garantia de políticas públicas que possibilitem a permanência das famílias na terra. À medida que as titulações ocorrem individualmente, o governo se exime da responsabilidade de garantir infraestrutura para essas populações”, alerta Andréia Silvério, que integra a coordenação nacional da Comissão Pastoral da Terra (CPT).

“A reforma agrária é uma questão central de justiça social, para corrigir desigualdades históricas e estruturantes da sociedade brasileira. Não é porque ela foi paralisada no governo Bolsonaro que não existe demanda de famílias em processos coletivos de luta pela terra para serem assentados”, afirma Silvério, para quem a estagnação de ações públicas nesse sentido acabou por acumular problemas para o próximo governo. “Há um represamento da demanda. Na nossa avaliação, a reforma agrária é a principal forma de garantia de direitos humanos, possibilitando espaço para reprodução de uma vida digna, alimento, acesso à educação e proteção ambiental.” 

2. "Revogaço" de decretos de armas

Os movimentos sociais analisam que um “revogaço” dos decretos de armas de Bolsonaro, que facilita o direito à posse de armas de fogo, só depende da vontade política do grupo político de Lula. Em entrevistas, Flávio Dino (PSB), cotado para assumir o Ministério da Justiça no próximo governo, se mostrou favorável ao desarmamento. 

Combater a violência no campo deve estar na agenda prioritária do novo governo: organizações se preocupam, por exemplo, com decretos que ampliaram o acesse a armas entre proprietários de terra; na foto, Memorial em homenagem à freira Dorothy Stang, morta em Anapu (PA), com cruzes representando os trabalhadores rurais assassinados e ameaçados (Foto: Daniel Beltrá/Greenpeace)

As organizações também demonstram preocupação com outro decreto assinado por Bolsonaro, em maio de 2019, que permite que o proprietário rural com posse de arma de fogo utilize o objeto em todo o perímetro da propriedade, bem como que os colecionadores, atiradores desportivos e caçadores (CACs) possam ir de casa ao local de tiro com a arma carregada. “Do golpe de 2016 para cá, aumentou em 350% o número de assassinatos de lideranças quilombolas. Houve uma autorização implícita e até explícita para matar. As comunidades estão sofrendo muito assédio dos ditos "cidadãos de bem"”, afirma Givânia Silva. 

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A representante da Conaq também relaciona as mortes à paralisação da regularização dos territórios quilombolas. “O IBGE estimou em 2019 que existem cerca de 5.972 comunidades quilombolas no Brasil, a Conaq diz que somos 6,5 mil comunidades e o Estado só reconhece 4 mil, embora a titulação definitiva esteja em torno de 300 comunidades. Há um passivo altíssimo na regulação dos territórios”.

3. Educação no campo

Responsável pela formação de 192 mil pessoas desde 2015, o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) é fundamental para a formação – da alfabetização ao ensino superior – de camponeses e quilombolas. No entanto, Bolsonaro extinguiu a coordenação responsável pelo programa, inviabilizando sua continuidade. “O Pronera é um instrumento que facilita a permanência dessas pessoas na terra”, afirma Silvério, da CPT. 

“O Brasil é um país que mata sua força de trabalho futura, sua juventude. Para reverter isso, temos a expectativa de que haja garantia de qualificação para o jovem do campo, para que ele ingresse no mercado de trabalho”, afirma a educadora Givânia Maria da Silva, representante da Conaq. O Pronera é uma maneira para que o jovem permaneça no quilombo, já que atualmente menos de 2% dos quilombos brasileiros contam com escolas de Ensino Médio.   

4. Programa Nacional de Direitos Humanos

Em 2009, Lula sancionou o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 (PNDH-3), que reúne diretrizes para atuação do poder público na área dos direitos humanos, considerando aspectos como a universalização dos direitos em contexto de desigualdades, segurança pública e acesso à Justiça, combate à violência, educação e cultura em direitos humanos, bem como direito à memória e à verdade. 

Defensores de direitos humanos estão cientes dos desafios para implementar uma agenda positiva na área, por conta de questões como "órgãos públicos a agências do governo destroçados"; na foto, área ocupada pela Liga dos Camponeses Pobres a 130 km de Porto Velho, alvo de disputadas judiciais e violência (Foto: Fernando Martinho/Repórter Brasil)

No entanto, de acordo com Chalréo, da CNDH, o programa não saiu do papel apesar de seu escopo fundamental: “É um documento que abordar questões relacionadas às mulheres, negros, população LGBTQUIA+, juventude e povos indígenas. É preciso retomar esse debate”. Ele reconhece o grande volume de encaminhamentos inclusos no programa e as dificuldades para sua execução total, mas afirma que, na prática, a escolha do que será priorizado depende da pressão dos movimentos sociais. “A questão de prioridade num governo quase sem capacidade de investimento também passa por algumas escolhas políticas. O Estado vai continuar pagando essa monstruosidade de juros aos banqueiros?”

A longo prazo, Chalréo acredita que o país precisa retomar seu processo de industrialização para ter recursos para investir nas pautas de direitos humanos. “Há problemas em todas as frentes. E para contar com uma política sólida de sustentação do país, é preciso de uma política industrial. O Brasil tem que voltar a ser um parque industrial sólido para a América Latina, para que a próxima geração tenha mais condições de avançar na área social”, afirma.

5. Promoção da agricultura sustentável 

Segundo acompanhamento realizado pela “Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos pela Vida”, mais de 2 mil tipos de agrotóxicos foram liberados durante os quatro anos de Governo Bolsonaro. O dado contrasta com a escassez de recursos públicos para saúde, educação, ciência e tecnologia, bem como o esvaziamento das políticas públicas para a produção de orgânicos e agroecológicos e com o desmonte dos órgãos e da legislação ambiental. É nesse contexto que a dirigente nacional do setor de gênero no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Lucinéia Freitas, chama atenção para a necessidade de fortalecimento de iniciativas em prol de uma agricultura sustentável. “Para isso, é necessário revogar os decretos de liberação de todos esses agrotóxicos e também reequipar o Ibama, a Funai e o Instituto Chico Mendes”, comenta. 

No MST, a temática costuma ser trabalhada a partir do debate da agroecologia, em iniciativas como o Plano Nacional Plantar Árvores, Produzir Alimentos Saudáveis”, um espaço de articulação, formação, organização política e de amplo debate, constituído com objetivo de reafirmar a Reforma Agrária Popular, a defesa dos territórios e a soberania alimentar. “É uma campanha que a gente vem construindo por entender que há uma relação muito direta entre os modos de produção do latifúndio e os problemas ambientais que a gente vivencia. A gente faz a defesa da agroecologia que de fato tenha base no cuidado com a natureza e que garanta a soberania dos povos na produção e qualidade nutricional”, conclui Freitas. 



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