Copa do Mundo: trabalho escravo na construção civil aproxima Qatar e Brasil

Por Portal O Piauí em 22/11/2022 às 14:58:13

Essa, contudo, não é uma realidade apenas do Qatar, situações semelhantes são encontradas nos canteiros de obras brasileiros. Nos últimos 12 anos, 2.742 pessoas foram encontradas em situação análoga à de escravo na construção civil no Brasil, segundo dados do Ministério do Trabalho e Previdência. O pico de resgates aconteceu em 2013, quando o país realizou um grande investimento em obras de desenvolvimento e infraestrutura para receber a Copa do Mundo (2014) e as Olimpíadas do Rio (em 2016) e também no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento.

A pressa para a conclusão das obras agrava a falta de compromissos das empresas com a segurança dos trabalhadores. Na Copa do Mundo de 2014, por exemplo, nove brasileiros morreram na construção de estádios – que se somaram aos mais de 1.400 trabalhadores da construção civil que foram vítimas de acidentes fatais entre 2010 e 2014, de acordo com informações do Anuário Estatístico de Acidentes de Trabalho (AEAT)

No Qatar, o número é ainda mais estrondoso. Desde a escolha do país como sede do Mundial, em 2010, até 2020, mais de 6.500 trabalhadores imigrantes da Índia, Nepal, Bangladesh, Paquistão e Sri Lanka morreram na construção de estádios, rodovias, hotéis, entre outros grandes projetos, segundo levantamento do jornal britânico The Guardian. O governo qatariano confirma apenas três dessas mortes.

“Tanto no Qatar quanto no Brasil, foram acidentes trabalhistas passíveis de serem evitados. Uma análise de risco adequada, uso de equipamentos de proteção, treinamento dos trabalhadores, tudo isso são fatores que poderiam ter evitado essas mortes”, afirma Giuliana Cassiano, auditora fiscal do Ministério do Trabalho.

A mão-de-obra da construção civil tanto aqui quanto no país sede da Copa não são muito diferentes. A maior parte dos trabalhadores encontrados em situações degradantes nos canteiros de obras são jovens e negros que saem de regiões pobres com pouca oferta de emprego. Normalmente, são aliciados ilegalmente e partem para locais que apresentam um “boom” de crescimento – conjunto de características que possibilitam a superexploração do trabalho.

O quadro piora com a exigência de metas e a possibilidade de terceirização e subcontratação. “Isso pulveriza a responsabilidade e desemboca nas costas do trabalhador, que é quem paga o preço dessa estrutura de descaso”, pontua Christiane Nogueira, procuradora regional do trabalho. “São raízes profundas de desrespeito e de violações da dignidade dos trabalhadores, como se não tivessem direitos”, completa.

Mais de 90% dos trabalhadores no Qatar são estrangeiros e foram até o país da Copa em busca de oportunidades de trabalho (Foto: ILO/Apex Image)

Desrespeito à legislação

Após críticas recorrentes de ONGs internacionais e sindicatos, entre 2018 e 2021, o Qatar promoveu diversas reformas em sua legislação trabalhista, a fim de minimizar os abusos cometidos contra os trabalhadores. A nova lei estabeleceu um novo salário mínimo, proibiu que os operários trabalhassem ao ar livre em períodos de calor intenso e flexibilizou o sistema de apadrinhamento adotado por alguns países do Conselho de Cooperação do Golfo, conhecido como “kafala” – que impede que os imigrantes troquem de trabalho, abram uma conta bancária ou deixem o país sem prévia autorização do empregador, ou seja um controle do empregador sobre o trabalhador.

A auditora fiscal Giuliana Cassiano afirma que são raros os casos em que há uma retenção de documentos e pertences no Brasil, algo que se assemelharia ao “kafala”. “Às vezes, a gente tem retenção dos documentos pelo intermediador, pelo "gato" ou pelo dono da empreiteira”. Quando isso acontece, raramente o trabalhador deixa o local de trabalho, pois quer reaver os documentos e receber o salário, ela diz. “É muito vergonhoso retornar ao seu local de origem sem nada na mão. Como eles vão dizer para suas famílias que foram enganados?”

Contudo, outras situações configuram o crime no Brasil, segundo o artigo 149 do Código Penal: jornada exaustiva, falta de pagamento, servidão por dívida e condições precárias de trabalho e alojamento.

Em 2019, uma fiscalização realizada em obras de restauração da Rodovia Raposo Tavares, entre os municípios paulistas de Itapetininga a Paranapanema, resultou no resgate de 12 trabalhadores de condições análogas à de escravos. Devido ao caso, o Consórcio SP 270, responsável pela restauração da rodovia e formado pelas construtoras SA Paulista, Ellenco Construções e Bandeirantes, foi incluído na mais recente “lista suja” do trabalho escravo (cadastro divulgado semestralmente pelo governo federal com o nome dos empregadores escravagistas). Procurado pela Repórter Brasil, o consórcio não se posicionou até o momento.

De acordo com o relatório de fiscalização, os trabalhadores viviam em dormitórios sujos que poderiam pegar fogo a qualquer momento. A maioria deles também não tinha recebido pagamento nos três meses que estavam ali, fazendo-os recorrer ao serviço social dos municípios e à ajuda de vizinhos para poderem se alimentar.

Esse tipo de situação degradante no trabalho não é incomum no Brasil. Em 2013, 111 migrantes nordestinos foram resgatados da obra de ampliação do aeroporto de Guarulhos, gerenciada pela ex-OAS, atualmente grupo Metha. Segundo a fiscalização, os trabalhadores se espremiam em 11 casas enquanto aguardavam ser chamados para o serviço. Constatou-se ainda o aliciamento de pessoas e a servidão por dívida. Em nota publicada na época, a construtora negou que as vítimas fossem seus empregados.

Cozinha de uma das casas: o fogão portátil comprado pelos trabalhadores ficava em cima de uma cadeira, ligado ao botijão de gás no pé do colchão de ar onde um deles dormia (Foto: Stefano Wrobleski)

Escravizando com dinheiro público

Obras de metrôs, hidrelétricas, casas populares, a lista é longa quando se trata do financiamento público do trabalho escravo. Ao longo dos anos, milhões de reais dos cofres estatais foram destinados a infratores trabalhistas. Porém, há uma série de cuidados que os órgãos públicos podem assumir para não financiar a escravidão moderna. 

A falta de fiscalização dos canteiros de obra por parte dos bancos financiadores e das empreiteiras é um dos principais erros, segundo Cassiano. “A contratante tem corresponsabilidade das condições de segurança e de saúde do meio ambiente de trabalho. Não é porque a legislação atualmente permite a terceirização, uma quarteirização irrestrita, que o empregador está no direito de submeter pessoas a condições ruins de trabalho”, afirma.

Calor escaldante, jornadas exaustivas e retenção de documentos são algumas das situações que foram enfrentadas pelos trabalhadores no Qatar (Foto: ILO/Apex Image)

A procuradora Christiane Nogueira afirma que muitos bancos se baseiam apenas na inclusão do nome dos empregadores na “lista suja” para determinar se haverá ou não o repasse de dinheiro. Contudo, há a necessidade de uma análise mais rigorosa para assegurar que os recursos públicos não financiem infratores trabalhistas.

“É possível consultar a Justiça do Trabalho, verificar matérias jornalísticas, pesquisar sobre aquela empresa, fazer uma busca sobre qual sua postura em relação aos direitos humanos e trabalhistas, porque às vezes não chega a ser trabalho escravo, mas é um caso gravíssimo de violação trabalhista que não consta na "lista suja"”, ressalta Nogueira.


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