Esquema que prendeu "rei do ouro" envolve balsas de garimpo ilegal no Amazonas

Por Portal O Piauí em 24/09/2022 às 11:44:16

O trabalho dos policiais federais começou em novembro de 2020, após o recebimento de uma denúncia anônima sobre o pouso de um avião com 3kg de ouro ilegal em Porto Velho (RO). O minéerio teria saído do aeroporto de Japurá, no norte do Amazonas, próximo à fronteira com a Colômbia. 

Ao efetuar o flagrante, a PF interrogou e apreendeu os celulares do piloto e dos três passageiros, quebrou o sigilo telefônico e financeiro dos envolvidos e rastreou uma rede que agora é investigada por suspeita de formação de quadrilha e lavagem de dinheiro. 

Entre eles está Sobrinho, cuja empresa FD"Gold DTVM (Distribuidora Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários) teria movimentado “de forma atípica” R$ 2,1 bilhões entre janeiro de 2018 e setembro de 2019, segundo relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Há pagamentos feitos para garimpeiros que atuam na clandestinidade sem as devidas permissões ambientais e de operação. A PF suspeita que Sobrinho esteja praticando lavagem de dinheiro e “esquentando” o metal, ou seja, legalizando o ouro obtido na ilegalidade.

Ao comprar de garimpeiros, é preciso que uma nota fiscal seja preenchida pelo vendedor declarando a origem do minério extraído. É neste momento que ouro explorado de áreas proibidas tem a falsa declaração de origem, tornando-se, documentalmente, “legal”. No Brasil, para explorar o metal é preciso ter autorização da Agência Nacional de Mineração (ANM) e licença ambiental expedida pelo estado ou município. A extração é proibida em terras indígenas, segundo a Constituição.

Uma das conexões do grupo criminoso com a FD"Gold é Ubiraci Soares Silva, segundo a PF. Conhecido como Macarrão, Silva é ex-prefeito de Novo Progresso, município do sudoeste paraense, uma das três cidades mais afetadas pela garimpagem ilegal segundo estudo da Universidade Federal de Minas Gerais. Ele é procurador jurídico da FD"Gold e a investigação afirma que duas empresas suas depositaram quase R$ 4 milhões em contas bancárias de pessoas investigadas no esquema de balsas.

A PF destaca no inquérito que Macarrão “já foi indiciado por crime de lavagem de dinheiro, além também de ter sido indiciado por usurpação de bem público da União, haja vista a extração ilegal de minério”. O documento ainda cita que, quando ocupava a prefeitura, entre 2017 e 2020, o político foi um “defensor do garimpo em áreas de preservação”.  

“Percebe-se que Ubiraci é um dos grandes fornecedores de dinheiro para a organização criminosa, sendo, ou procurador, ou representante legal das empresas que remetem dinheiro de forma ilícita aos membros da organização criminosa, valendo-se de seu poder político para tal ato”, expõe o relatório da PF. 

Tentamos contato com Macarrão no número de telefone informado no processo judicial, mas não obtivemos resposta. Ele também teve prisão temporária decretada pela Justiça na última semana. 

"Rei de ouros"

Para se ter uma idéia do poderio econômico de Sobrinho, nos dois últimos anos (2021 e 2020), a FD"Gold foi a terceira maior recolhedora da Compensação Financeira por Exploração Mineral (Cfem), ficando atrás apenas das multinacionais Kinross e AngloGold Ashanti no pagamento de impostos referente à exploração de ouro no Brasil. Ou seja, a empresa foi a maior compradora brasileira de ouro nestes dois anos.

Dirceu Sobrinho é mais do que um empresário investigado. Ele é o presidente da Associação Nacional do Ouro (Anoro), um frequentador dos gabinetes de ministros em Brasília e um defensor da exploração de ouro em terras indígenas. Também tentou carreira na política: foi candidato a 1° suplente do ex-senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) em 2018, quando declarou uma fortuna de R$ 20,3 milhões.

“Considerando todo o poderio econômico, entende-se que manter Dirceu em liberdade enquanto há a colheita dos elementos de prova pode prejudicar o andamento das investigações, afinal, pode haver a tentativa de ocultação de provas e ameaça às testemunhas”, sustentou a delegada Ana Paula Meirelles de Oliveira na justificativa para o pedido de prisão.

Dirceu Sobrinho ao lado de José Altino Machado (de barba) em reunião com o vice-presidente Hamilton Mourão (Foto: Romério Cunha/VPR)

Em abril, Dirceu concedeu uma longa entrevista para a Jovem Pan. Exibindo cordão e pulseiras de ouro reluzentes, o empresário disse que os garimpeiros foram empurrados para a ilegalidade pelo governo federal e defendeu a aprovação de lei para permitir o garimpo em terra índigena. 

A Repórter Brasil procurou o escritório de advocacia Nogués Moyano, que representa Dirceu, mas os advogados do empresário não responderam às perguntas enviadas por email e nem às ligações para o escritório. 

No caminho do ouro

O esquema investigado pela PF que culminou na Operação Aerogold envolve dezenas de garimpeiros, atravessadores e empresários. A ilegalidade da extração aurífera na região norte do Amazonas ocorre porque não há Permissão de Lavra Garimpeira (PLG) em Japurá, no Amazonas. Tanto a PF quanto o MPF requisitaram essa informação para a ANM e receberam como resposta que a cidade do norte do estado, quase na fronteira com a Colômbia, tem 30 requerimentos, mas nenhum deles autorizado. 

Na mesma região, em Jutaí, existem 16 requerimentos e três PLGs, sendo que as autorizações são todas para Cooperativa de Garimpeiros da Amazônia, a Coogam. Ainda segundo a ANM, a cooperativa produziu 89,7 kg de ouro em 2020 e 69,2 kg  em 2021. A Coogam também tem PLG no Pará e em Rondônia. 

“Embora a Coogam possua permissão de lavra garimpeira, o avião que transportava o ouro ilegal apreendido vinha da região de Japurá, local onde inexiste qualquer permissão de lavra garimpeira”, escreveu o procurador Márcio Araújo do MPF em Rondônia, reforçando a denúncia realizada pela PF. Para o procurador, a ausência de PLG em Japurá é a comprovação da existência de um crime.  

A PF pediu à agência de mineração uma vistoria nos garimpos do rio Jutaí e eles constataram que não havia produção de ouro nas PLGs da Coogama. “Há grandes evidências que estão esquentando [legalizando] ouro produzido em outras regiões, como no rio Japurá e/ou rio Madeira”, informa o relatório da ANM entregue para a PF. Segundo a agência, a FD"Gold de Dirceu declarou ter comprado ouro desses locais.  

A vistoria dos servidores da ANM foi interrompida, pois se sentiram ameaçados. “Optamos por não mais dar mais continuidade à vistoria, bem como em não pernoitar no local; optamos por preservar a nossa integridade e resolvemos retornar a Jutaí”, escreveram no relatório.  

A advogada e sócia da Coogam, Tânia Oliveira Sena, estava no avião no momento do flagrante. Ao quebrar seu sigilo bancário, a PF identificou as remessas de dinheiro que ela recebeu: a FD"Gold de Dirceu Sobrinho enviou R$ 620 mil para ela entre dezembro de 2019 e março de 2021. 

A reportagem tentou contato com Sena pelo celular disponível no site da Coogam, mas ela não atendeu a ligação. 

Balsas de ouro atuam ilegalmente no rio Madeira, no Amazonas (Foto: Avener Prado/Repórter Brasil)

Seguindo esse padrão de investigação, a PF identificou outros atores que garimpam ilegalmente usando balsas e dragas no rio Japurá e também no rio Madeira e que movimentam entre si elevadas quantias. Identificou também possíveis empresas usadas como laranjas para esquentar o dinheiro. 

Em um dos casos apontados na investigação, uma empresa de turismo teria recebido quase R$ 1 milhão em depósitos de integrantes do grupo criminoso. Os investigadores chegaram a visitar o endereço informado como sede da empresa, em Humaitá, no Amazonas, mas encontraram apenas um posto de gasolina e uma loja de roupas no local.  

“Os investigados associaram-se, em estrutura ordenada e caraterizada pela divisão de tarefas, com o objetivo de possibilitar a lavagem de dinheiro de bens, direitos e valores provenientes da extração ilegal de ouro”, sustenta o procurador do MPF Márcio Araújo. “As práticas delitivas têm sido reiteradas e permanentes”, completa.  

Grande esquema nacional

Um dos trunfos de Sobrinho que o levam a faturar tanto é a capacidade de negociar ouro em diferentes locais. Segundo a ANM, a FD"Gold declarou a compra de ouro de 252 títulos minerários diferentes no ano passado. A pulverização de fornecedores de diferentes estados da Amazônia também o torna alvo de diversas investigações. 

Antes de a nova investigação vir à tona, a FD"Gold já havia sido acusada pelo Ministério Público Federal de comprar ouro extraído de terras indígenas, principalmente dos territórios dos povos Kayapó e Munduruku. A  empresa também é apontada como uma das compradoras do ouro ilegal da Terra Indígena Yanomami, segundo outra investigação da Polícia Federal, revelada pela Repórter Brasil.  

“A ré FD"Gold DTVM, portanto, promoveu compras de produtos, insumos, marcadas pela ilegalidade. Pior: obteve ganhos econômicos com essa ilegalidade, incorporando o minério ilegal em suas atividades econômicas regulares”, afirmam os procuradores em ação civil pública de 2021 que pede a condenação da FD"Gold, a paralisação das atividades da empresa no Pará e o pagamento de uma indenização por danos materiais e socioambientais de R$ 1,75 bilhão. Em outra investigação da PF, em Redenção, no sul do mesmo estado, a FD"Gold também foi apontada como uma das compradoras de ouro ilegal extraído da Terra Indígena Kayapó. 

A filha de Dirceu também atua no setor aurífero. Sarah Frederico Westphal é sócia da FD"Gold e responsável pela refinadora Marsam, que compra pelo menos um terço do ouro “em família”, ou seja, da FD"Gold, segundo informou um consultor externo da empresa, André Nunes, a uma reportagem da Associated Press.

A refinadora ligada à família, por sua vez, fornece ouro para as quatro empresas mais valiosas do mundo – Apple, Google, Amazon e Microsoft –, conforme revelou investigação da Repórter Brasil publicada em julho. Após ser questionada pela reportagem, a Apple anunciou que retirou a Marsam da sua lista de fornecedores.  

*Hyury Potter é fellow da Rainforest Investigations Network, do Pulitzer Center, em parceria com a Repórter Brasil.



Comunicar erro
BANNER QUEIMADAS

Comentários

Mulheres Acompanhantes