Cleosmar Antonio Turmina possui três fazendas no Pará, a Santa Luzia, localizada dentro da terra Apyterewa, a Turmina e a Gaúcho, que ficam do lado de fora, mas no mesmo município de São Félix do Xingu. Em setembro de 2021, a primeira propriedade mandou animais – criados de forma irregular, pois dentro de terra indígena – para a segunda, com finalidade de engorda. Dias depois, a Turmina vendeu um lote de bois para a JBS. Em março de 2022, houve nova transação entre esta fazenda e o frigorífico.
E não é só: as fazendas Turmina e Gaúcho são vizinhas, de acordo com registros oficiais, e uma enviou gado para a outra em 2021 e 2022. Por fim, a Gaúcho vende para a Frigol, o que abre outra possibilidade de que os produtos desta marca contenham gado ilegal criado dentro da TI.
“Esse gado entra na cadeia de produção dos frigoríficos, apesar de ser ilegal. Temos sérios problemas com a rastreabilidade desses animais que estão na Apyterewa”, critica Carlos Fausto, antropólogo do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de uma tese de doutorado sobre o povo Parakanã.
A Repórter Brasil tentou, sem sucesso, contato com Turmina via suas redes sociais e com seus representantes legais que constam no cadastro nacional da Ordem dos Advogados do Brasil. O espaço para seus esclarecimentos segue aberto.
A reportagem ainda localizou outras quatro fazendas dentro da Apyterewa que receberam e venderam bois para propriedades fora dos limites da área protegida. Por sua vez, elas repassam, de forma indireta, a grandes frigoríficos – é uma cadeia que possui mais de dois intermediários antes que os animais cheguem aos abatedouros. As três maiores empresas brasileiras do setor da carne, JBS, Marfrig e Minerva, já anunciaram protocolos de monitoramento de seus fornecedores indiretos, mas seus planos alcançam apenas as fazendas fornecedoras de seus fornecedores diretos, tornando os elos anteriores invisíveis aos sistemas.
Os efeitos da invasão na Apyterewa se traduzem em números: no total 55 mil hectares da terra indígena já foram desmatados (cerca de 14% do total) – mais da metade nos últimos quatro anos.
Segundo pesquisa do Imazon, que abrange o período de abril a junho de 2022, trata-se da TI mais pressionada pelo desmatamento da Amazônia: atualmente, conta com 48 pontos críticos de derrubada da mata em seu território. Apenas no mês de junho, ela concentrou 52% de todo o desmatamento em TIs da Amazônia.
“Hoje tem garimpeiro, madeireiro, caçador, pescador, ruralista e fazendeiro dentro da Apyterewa. Esse é um resumo da situação lá”, revela Kaworé Parakanã, liderança da Apyterewa e presidente da associação Tato"a, que representa os indígenas.
A invasão do território Parakanã por não indígenas já é antiga, e começou bem antes de 2007, quando a Apyterewa foi formalmente criada pelo governo brasileiro.
“No início do anos 80 havia pequenos garimpos nas cabeceiras de alguns rios, e uma ou outra fazenda no local. No final daquela década madeireiras abriram uma estrada na região cortando a mata, e isso foi a ponta de lança para a entrada de outros invasores”, explica Fausto, da UFRJ.
Depois que os invasores retiraram todo o mogno e o cedro da área, começaram a plantar pasto para renovar o valor comercial do local. Em 2020, a Repórter Brasil já havia denunciado a venda de milhares de cabeças de gado de fazendas localizadas dentro da TI para grandes empresas do setor, como a Marfrig, e outras regionais, como Frigol e Mercúrio. A prática, no entanto, não cessou.
“Não queremos as nossas florestas no chão. Queremos floresta em pé, estamos lutando para isso. Graças à floresta temos nossa cultura, nossa identidade e nosso modo de vida. Sem floresta não somos nada”, complementa Xogoa Parakanã, morador da TI.
Após pressão das comunidades indígenas, no dia 12 de abril o Supremo Tribunal Federal deu luz verde para a retirada de não indígenas da Apyterewa – foi uma resposta também ao procurador-geral da República, Augusto Aras, que defendeu a saída dos invasores. Segundo o PGR, os atrasos no processo de retirada dos não-indígenas “tem causado sérios problemas às comunidades tradicionais”.
Mas, cinco meses depois, não há avanços visíveis. Fontes ouvidas pela reportagem sob condição de anonimato afirmaram que a base local da Funai está desativada por não contar com proteção da Força Nacional. O Ministério da Justiça, responsável por esta tropa de segurança, confirma que a autorização para sua atuação na área venceu em 10 de agosto e que um novo pedido da Funai está sendo analisado. O órgão indigenista, por sua vez, ignorou os pedidos da reportagem para que esclarecesse as razões da paralisação.
Não só a retirada de invasores não foi realizada como, na verdade, aconteceu o oposto: as ameaças contra os indígenas ganharam força após a decisão da suprema corte. No dia 15 de maio um encontro entre uma família Parakanã e fazendeiros quase terminou em violência. “Um ancião foi caçar atrás de alimento com sua esposa e crianças. No retorno para a aldeia o grupo parou na beira de uma trilha para se alimentar, comer mamão, e de repente apareceram homens a cavalo, um grupo grande, com muitas cabeças de boi. Começaram a falar grosso e ameaçar a família”, afirmou Kaworé.
A Polícia Federal esteve na aldeia após o incidente, e confirmou a invasão do local por fazendeiros que teriam deixado “cerca de cem cabeças de gado” em áreas desmatadas próximas antes de saírem da área protegida. Os indígenas disseram às autoridades terem ouvido dos invasores que a aldeia “deveria ser removida”, e que a terra “era dos fazendeiros”.
Para deixar a situação ainda mais crítica para os Parakanã, a prefeitura municipal de São Félix do Xingu não vê a TI com bons olhos. “É preciso um novo estudo antropológico da área, porque o que foi feito teve fraudes e vícios, então é preciso fazer um que busque a verdade, o município defende isso”, afirma Igor Franco de Freitas, procurador de São Félix do Xingu, que clama pelo “direito dos não indígenas”, e argumenta que a retirada dos invasores provocará “um caos social muito grande”, levando a problemas como fome, falta de “moradia e trabalho” na região.
O prefeito de São Félix do Xingu, João Cleber de Souza Torres (MDB) chegou a ameaçar renunciar ao cargo em 2016 caso a retirada de não indígenas fosse levada a cabo. Ligado à pecuária, dono de cinco fazendas no município, ele tem um histórico de acusações de grilagem e recebeu três multas do Ibama entre 2011 e 2014, que somam mais de R$ 6 milhões, por crimes ambientais – entre eles a derrubada da floresta amazônica.
O prefeito nega as acusações. Questionado pela reportagem, disse que as multas são decorrência de uma invasão de seus imóveis, e que “foram outras pessoas que promoveram as derrubadas, mas o CAR está em meu nome, por isso recebi as notificações das multas”. De acordo com Torres, a Polícia Civil investigou o caso e teria “provado os verdadeiros responsáveis pelos crimes ambientais” – mas o prefeito não apontou onde essa informação poderia ser checada nem apresentou documentos que a sustentem. Ele também negou ter praticado grilagem.
Depois de conseguir barrar a primeira tentativa de desintrusão autorizada pela Justiça, em 2016, a prefeitura agora tenta fazer com que o STF retome uma “conciliação” entre os invasores e os indígenas, determinada em 2020 pelo ministro Gilmar Mendes, do STF. Na prática, tal conciliação abriu uma perspectiva de que os indígenas perdessem até metade de suas terras (cerca de 392.000 hectares).
“Pedimos a reconsideração por parte do STF, para que o processo [de conciliação] volte. É uma vontade dos índios e dos não índios”, diz o procurador Igor Franco de Freitas.
“A conciliação é inconstitucional”, revolta-se Fausto, da UFRJ. “Uma terra homologada não pode ser reduzida. Se há famílias em estado de vulnerabilidade [dentro da TI] é necessário fazer reforma agrária, mas fora de lá. E para os fazendeiros, é saída sem indenização, a não ser que provem que entraram de boa fé nos anos 90”, complementa.
“O fato de contestar na Justiça esse procedimento de demarcação da terra e retirada dos invasores já insufla os fazendeiros contra os indígenas Parakanã”, emenda Rafael Modesto, advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário.
O desejo dos Parakanã é claro. Em março, durante assembleia na TI, eles defenderam a retirada completa e irrestrita de invasores de seu território.