Cachaça x cerveja: "imposto do pecado" racha indústria de bebidas alcoólicas

Setores da indústria de bebidas alcóolicas no Brasil estão em pé de guerra sobre o formato do chamado “imposto do pecado” – a taxação especial criada pela reforma tributária sobre produtos que causam mal à saúde e ao meio ambiente.

Por Portal O Piauí em 11/03/2024 às 04:46:23

"Já está mais do que comprovado que políticas tributárias funcionam para redução de consumo", afirma Paula Johns, diretora-geral da organização ACT Promoção da Saúde. “Restrição de marketing, alerta para o consumidor e ambientes que não promovam o consumo são muito importantes também, mas preço é o elemento mais determinante", garante Johns.

Ana Maria Maya, do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), acrescenta que a cobrança de impostos seletivos é inclusive recomendada pela OMS (Organização Mundial da Saúde). "Essas ações são consideradas uma estratégia vantajosa para a população e para os governos, já que salvam vidas e previnem doenças, ao mesmo tempo que mobilizam recursos financeiros para o país", explica.

A Repórter Brasil acompanhou as últimas reuniões realizadas na Câmara dos Deputados com representantes da indústria para debater e tentar influenciar a nova regulamentação para o setor, que está sendo construída pelo governo federal por meio de um projeto de lei complementar.

A expectativa é de que a proposta, que também deve se estender aos chamados “alimentos ultraprocessados”, seja apresentada ao Congresso até meados de maio, para que o imposto seletivo seja votado e comece a ser cobrado em 2027.

Imposto único ou progressivo?

Na indústria, o debate divide os fabricantes. A postura mais controversa é puxada pelo grupo dos destilados, que reúne os fabricantes de whisky e cachaça, por exemplo. Em reunião realizada na primeira semana de março, o presidente da Associação Brasileira de Bebidas Destiladas (ABBD), Eduardo Cidade, tentou trazer todos para "o mesmo lado", sob o argumento de que é preciso evitar "assimetrias".

Na prática, os destilados defendem que seja estipulada uma alíquota única de imposto seletivo para todo tipo de bebida alcoólica, independentemente da quantidade de álcool. "O importante é que a gente procure tratar de ética tributária no Brasil, e isso passa por isonomia tributária dentro dos setores", disse Cidade, enquanto os representantes de outros setores ouviam em silêncio.

O argumento dos destilados se baseia na tese de que o objetivo do imposto seletivo não é ampliar a arrecadação do governo, mas sim diminuir o consumo de produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente.

"Sendo assim, o segmento industrial brasileiro não pode entrar nessa guerra de querer tributar mais um e menos outro. Taxar de forma diferente produtos cujo consumo abusivo pode gerar os mesmos danos à saúde seria contribuir para a manutenção de um ambiente concorrencial injusto, sem a garantia de que o produto menos taxado seria consumido moderadamente", disse.

A reação dos cervejeiros foi imediata. Márcio Maciel, presidente executivo do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv), evocou a “ética” e a “saúde da população” para defender o seu argumento: "As boas práticas internacionais para tributação de bebida alcoólica adotam um modelo gradual de tributação, conforme o teor alcoólico”.

A Opas (Organização Pan-Americana de Saúde), por exemplo, defende que impostos específicos sobre o teor alcoólico "são ainda mais eficazes porque levam a um consumo menor, reduzem a iniciação entre os jovens e incentivam a indústria a oferecer bebidas com menor teor alcoólico".

No entanto, para Carlos Lima, diretor-executivo do Instituto Brasileiro da Cachaça (Ibrac), a alíquota deve ser uma só para todos. Ele afirmou que há quase mil produtores de cachaça registrados no Ministério da Agricultura. Desse total, 99% são micro e pequenas empresas.

"Nós sempre nos posicionamos contrários ao imposto seletivo, porque a gente entende que o combate ao consumo nocivo do álcool não é feito com o aumento de impostos, mas através de correta informação ao consumidor e com educação", comentou. "Ter um imposto que possa ter um caráter progressivo ou regressivo (conforme o teor alcoólico) fará com que iguais sejam tratados como desiguais", acrescentou.

Lima afirma que, quando se avalia a bebida mais consumida no Brasil, a cerveja lidera o ranking, com quase 84 litros per capita. Já o consumo de destilados fica em 4,1 litros por pessoa, anualmente. "A gente precisa olhar o padrão de consumo dessas bebidas alcoólicas e, não simplesmente, num processo rápido, tentar demonizar bebidas com alto teor alcoólico e favorecer aquelas com baixo teor. Esse é um ponto crucial para a discussão", justificou.

Os produtores de vinho, por sua vez, pensam de outra forma. Hélio Luiz Marchioro, diretor-executivo da Federação das Cooperativas Vinícolas do Rio Grande do Sul (Fecovinho), defende que a categoria se difere das demais e que há países onde se incentiva o seu consumo no lugar de destilados.

"Não seria correto, nem justo colocar todos no mesmo lugar. Não há país no mundo que trate o vinho da mesma forma que um destilado. São coisas completamente diferentes e assim são tratadas, seja em relação a imposto, processo produtivo ou saúde", comentou.

Produtores brasileiros de vinho pedem isenção do imposto seletivo, assim como em países da Europa; Medida é criticada pela OMS (Imagem: ilovehz/Freepik)

Na tentativa de escapar do imposto seletivo, a indústria do vinho faz lobby, inclusive, para tentar enquadrar o vinho com um "alimento funcional", ou seja, retirá-lo da categoria de bebida alcoólica, o que o isentaria do imposto seletivo. Há até um projeto de lei nesse sentido.

No entanto, a OMS critica o "tratamento especial" destinado à bebida e a isenção de impostos ao vinho em 22 países europeus. A organização divulgou em dezembro um "manual tributário do álcool", no qual defende impostos mais elevados para todos os tipos de álcool.

Segundo Paula Johns, a ACT Promoção da Saúde apoia a proposta de estabelecer uma alíquota única para bebidas alcoólicas. “Essa medida garantiria que o imposto seja igual para, aproximadamente, uma lata de cerveja, uma taça de vinho ou um shot de cachaça, tributando o álcool em si e não o valor etílico de cada bebida, evitando assim vantagens injustas para certos tipos de bebidas, como a cerveja", resume.

Ana Maria Maya, do Idec, explica que a organização ainda avalia internamente qual seria a melhor forma de tributação. “O fato é que estamos vivendo um momento único na história do país”, comemora.

Debate também afeta alimentos ‘ultraprocessados’

O imposto do pecado também recai sobre os chamados “alimentos ultraprocessados”, aqueles que envolvem várias etapas e componentes químicos em sua produção, geralmente mais nocivos à saúde.

Assim como ocorre com a indústria das bebidas alcoólicas, representantes do agronegócio, de varejistas e de restaurantes ainda não se entenderam sobre como o imposto seletivo recairá sobre os ultraprocessados.

Na semana passada, uma reportagem do The Intercept Brasil revelou a primeira versão de um pré-projeto sobre o assunto, compartilhada entre diversos setores da indústria e parlamentares ligados à Frente Parlamentar do Empreendedorismo. O texto traz uma série de demandas da indústria de alimentos e de bebidas, como a proposta de que seja enviado um projeto de lei complementar específico para cada tipo de produto, e não um setor como um todo.

Comunicar erro
BANNER QUEIMADAS

Comentários