No Dia da Educação professores explicam caminhos de ensino antirracista para que violência não seja naturalizada

A escola tem que chamar os alunos que cometem a violência para reensiná-los, afirma pesquisador

Por Portal O Piauí em 28/04/2023 às 20:51:17

A violência surgiu de onde ela menos esperava. Em pleno Dia das Mulheres, há quase dois meses, a professora Edmar Sônia Vieira Valéria, de 50 anos, em uma escola da região administrativa de Ceilândia (DF), recebeu de "surpresa" de um aluno uma palha de aço. A ação, considerada de caráter racista e machista, abalou a docente, mas não alterou as convicções de que é necessário e possível uma educação antirracista.

"O nosso trabalho deve ser com amor. Devemos levar em conta que as características dos alunos de hoje são muito diferentes das de 20 anos atrás", afirmou a professora em entrevista à Agência Brasil. As agressividades, segundo ela, são voltadas para serem filmadas e espalhadas pelas redes.

O celular, segundo testemunha, virou protagonista no dia a dia educacional. "Tudo acontece por meio do telefone dentro de uma escola. É por ali que eles combinam qualquer ato, qualquer ação. É o que eles usam para se agredirem, por onde se ameaçam. Ou quando desejam filmar um professor recebendo um pacote de palha de aço, como aconteceu comigo".

Ela defende maior participação das famílias na escola e uma revisão geral do processo de ensino-aprendizagem para efetivação de uma escola antirracista.

"Nós precisamos de ações efetivas. Além das leis, precisamos de modelos de educação mais atuantes, uma escola mais atraente. O caminho é a educação séria e não o castigo". Para ela, as escolas precisam contar histórias de pessoas negras a fim de que os alunos se vejam representados.

A professora explica que o aluno que a ofendeu pediu desculpas em diferentes ocasiões desde então e crê que ele aprendeu com o erro.

"Ele nunca foi um aluno agressivo. Chegava sempre com muita alegria. Sentava próximo à minha mesa. Ele se arrependeu e entendeu". A conscientização passou pelo caminho da repercussão e da solidariedade à professora, que se seguiram à violência, e pelas constantes conversas em sala.

Sem tabu

O caminho para uma educação antirracista, no entender do cientista social Vidal Mota Junior, obriga que o tema deixe de ser tratado como tabu e seja reconhecido como um problema a ser discutido e enfrentado em sala de aula.

"A gente vê como um longo caminho de conscientização. Mais de 56% da população são negros e menos representados em posições de liderança ou dentro de uma sala de aula", afirma o especialista, que coordena a organização não governamental (ONG) Dacor, com sede em São Paulo, que promove políticas e campanhas de conscientização sobre a questão racial no Brasil.

Para o pesquisador, é preciso que essa violência do racismo não seja naturalizada e todos os crimes gerem intervenções sérias. "A escola tem que chamar os alunos que cometem a violência para reensiná-los. E mostrar para toda a comunidade escolar que o preconceito racial não terá vez naquele espaço".

Protagonismos e prioridades

Além disso, segundo os professores, a escola deve apresentar sinais nítidos de democracia racial, com inclusão e protagonismos de histórias de heróis negros e não os clássicos personagens brancos de origem europeia.

Em 2023, ano em que a Lei Antirracista nas escolas completou 20 anos, a legislação tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira. O desafio dos sistemas educacionais, de todos os âmbitos, é que, além da lei, efetivamente se promova empatia e estrutura para que os estudantes entendam as próprias raízes, e de uma forma atraente.

Essa necessidade é reconhecida pela advogada brasiliense Karina Berardo, mãe de dois filhos negros adolescentes. "Na escola deles, a lei não saiu do papel. Não tem professores ou diretores negros. Para enfrentar isso, eles vão ter que cortar na própria carne. Claro que não precisa ser negro para falar sobre democracia racial".

Outra preocupação de Karina é o que chega pelos celulares, como alertaram os pesquisadores. Ela procura acompanhar, por exemplo, os grupos de mensagens dos filhos. "Não raras vezes, eu encontro a utilização de termos utilizados para agredir e diminuir as pessoas. Os meninos têm hábito de um chamar o outro de gay, de retardado, de preto. Quer dizer: utilizam termos de forma completamente equivocada. Eu conversei isso na escola: é preciso trazer pessoas deficientes, pessoas gays, pessoas negras para conversarem com os alunos. As escolas precisam abraçar a causa de verdade".

Pesquisa: 86% de trabalhadoras negras relatam casos de racismo

No Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, 21 de março, pesquisa feita pela consultoria Trilhas de Impacto aponta que 86% das mulheres negras já sofreram casos de racismo nas empresas em que trabalham.

A pesquisa inédita Mulheres negras no mercado de trabalho, realizada por meio da rede social Linkedin, contou com a participação de 155 mulheres na faixa etária de 19 e 55 anos, sendo a média prevalente entre 30 e 45 anos. Do total das participantes, 50,3% possuem nível superior e pós-graduação ou especialização; 13,5% mestrado e doutorado; e 24,5%, ensino superior completo. Suas áreas de trabalho são educação, recursos humanos, tecnologia da informação (TI) e análise de sistemas, telemarketing, relações-públicas, administração e comércio. A coleta de dados foi efetuada em 2021 e 2022.

À Agência Brasil, a diretora-presidente da consultoria, Juliana Kaizer, destaca que todas entrevistadas têm formação acadêmica. "Isso, para mim, é um dado muito relevante, porque todas as mulheres entrevistadas têm curso superior completo e estão formalmente empregadas. Chamou muito minha atenção que o fato de as pessoas terem nível superior ou pós-graduação não impede que elas sofram racismo. É assustador", manifestou Juliana.

A pesquisadora também é uma mulher negra, professora do MBA em responsabilidade social e sustentabilidade do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do curso de diversidade da Escola de Negócios (IAG) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). É ainda aluna de pós-graduação da Fundação Getulio Vargas e conselheira da Associação Brasileira de Recursos Humanos seção Rio de Janeiro (ABRH-RJ).

Mito

Na avaliação de Juliana, a pesquisa faz cair o mito da democracia racial que indica que, se a pessoa tiver um bom nível de educação, não vai sofrer racismo. O objetivo foi conhecer a realidade das mulheres pretas e pardas no mercado de trabalho.

Durante a análise dos dados, Juliana percebeu que alguns aspectos se repetiam nos relatos e decidiu dividi-los em categorias para melhor compreensão dos resultados qualitativos. Cabelo, por exemplo, foi um desses aspectos. Mais de 70% das mulheres relataram que, durante a jornada profissional, precisavam explicar porque o cabelo estava alisado, era black, ou a razão de terem colocado lace nos cabelos (prótese feita fio a fio em uma tela de microtule). "Acho que esse é um dado importante para a gente considerar."

Outro dado que chamou a atenção foi que 68% das profissionais disseram ter sido confundidas, em algum momento, com a faxineira ou moça da limpeza da empresa. "Eu estou falando de mulheres com ensino superior completo e pós-graduação", ressaltou. Uma coordenadora de área mencionou que, todo dia, o líder do setor pedia para ela deixar arrumado o espaço pessoal e dos demais colegas. "Ela não conseguia entender por que lhe era pedido aquilo. Os colegas iam embora e ela ficava limpando a sala. Até que se deu conta de que estava sendo vítima de racismo. Mas demorou, porque ficou mais de um ano nessa situação".

Rio de Janeiro (RJ) - A pesquisadora Juliana Kaiser fala sobre sua pesquisa a inclusão racial nas empresas. Foto: Divulgação
Pesquisadora Juliana Kaiser - Divulgação

Para Juliana, a situação é muito crítica. "É um negócio assustador". A pesquisa revela que mais de 50% das consultadas disseram que a cor da pele e o lugar onde moravam foi perguntado durante as entrevistas online no recrutamento. "Elas perceberam que, durante as entrevistas, no processo seletivo, tudo ia muito bem no formato online, com análise do currículo, mas que, no momento da entrevista ao vivo, com a câmera aberta, os recrutadores, em geral mulheres brancas, voltavam atrás. "Esse foi também um aspecto que as profissionais negras falaram muito".

Chamou a atenção também o fato de apesar de mais de 70% das respondentes terem pós-graduação, isso não faz com que elas subam na empresa. "Muitas estão há dez anos no cargo, não veem nenhuma pessoa parecida com elas em cargo de liderança, enfim, não se sentem estimuladas".

>>Read it in English: Study exposes lack of racial inclusion policies in Brazilian companies

>>Lea en español: Encuesta: no hay política de inclusión racial en las empresas del país

Distanciamento

Como pesquisadora negra, Juliana disse ter sido difícil sair um pouco dela mesma para focar na pesquisa de forma distanciada. "Porque estou falando de mim também. São barreiras pelas quais eu também passo. Se eu falo três idiomas, se moro fora do Brasil, não adianta. A cor da minha pele chega antes. E foi isso que a pesquisa mostrou. Muitas mulheres falam inglês, algumas têm mestrado e doutorado e são tratadas de uma forma aviltante. E, se tem racismo, é porque tem racistas".

Mulheres que estão em cargos de coordenação e gerência afirmaram que quando descobriam que um colega branco desempenhava a mesma função mas tinha salário maior, e elas pleiteavam aumento, as empresas criavam um cargo para justificar que a outra pessoa, na mesma posição, ganhava mais. Todas, sem exceção, falaram de exaustão no trabalho, tendo que dar provas de competência o tempo todo e, ao mesmo tempo, não ganhar o suficiente para sobreviver.

Outro dado importante é que as mulheres negras não crescem na carreira profissional no Brasil. "Elas podem até crescer em cargos, mas não crescem em dinheiro". Juliana destacou que 52% dos estudantes de universidades federais são negros e questionou por que essa prática não se repete nas empresas, com pessoas pretas em cargos de liderança, ganhando um bom dinheiro. De acordo com estudo do Instituto Ethos de 2020, mulheres negras representam 9,3% dos quadros das 500 maiores companhias do Brasil, mas estão presentes apenas em 0,4% dos altos cargos.

Ela espera que as empresas fiquem constrangidas diante do resultado da pesquisa e que isso possa levar a uma mudança de comportamento. "A gente tem um problema para resolver enquanto nação". Na pesquisa, das 155 entrevistadas, pelo menos 40 mulheres falaram das mesmas empresas e o nome de 16 dessas companhias se repetiu nas citações.

Edição: Graça Adjuto

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